domingo, agosto 31, 2025

NOVECENTO (1976)

1900
Um filme de BERNARDO BERTOLUCCI


Com Robert De Niro, Gérard  Depardieu, Dominique Sanda, Laura Betti, Sterling Hayden, Anna Henkel, Alida Valli, Stefania Sandrelli, Donald Sutherland, Burt Lancaster, etc.


ITÁLIA / 315 min / COR / 
16X9 (1.85:1)


Estreia em ITÁLIA a 16/8/1976
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 12/2/1977 (cinemas São Jorge e Mundial)
 


Alfredo Berlinghieri: «Desejo que o meu siga as leis»
Leo Dalcó: «E eu desejo que o meu seja ladrão»

Com a duração total de cinco horas e vinte minutos, “Novecento” é um fresco empolgante, épico e popular, que ressuscita e reabilita o romanesco, numa tradição que encontra sómente em "Gone With the Wind" um termo de comparação possivel. Simultâneamente crónica de uma família feudal em decadência, e panorâmica histórica, “Novecento” reserva-se já o lugar de clássico absoluto dos anos 70. Todo o filme, que tem por fundo as transformações históricas do século XX, gira à volta de três gerações, correspondentes ao decorrer temporal em dois estratos sociais diferentes e centralizando a acção na terra natal de Bertolucci, o aclamado realizador italiano.

Enquanto concentra a história nos bastidores, Bertolucci descarrega toda a sua nostalgia de encarar a vida na vivência de Olmo e Alfredo, quando eles se abstraem do que os rodeia para se entreolharem nas suas próprias personalidades. Se são a infância e a adolescência os terrenos mais permeáveis ao eclodir dessa nostalgia, será apenas na meia-idade e na velhice que ela atingirá o seu significado maior por entretanto já ser só saudade. Isto é o que Bertolucci nos consegue admiravelmente sugerir ao fazer-nos acompanhar o crescimento de Olmo e Alfredo durante quase meio século.

Politicamente, o filme tem o mérito de não querer enganar ninguém, de não pretender fazer passar gato por lebre. O dualismo surge desde a primeira cena e Bertolucci nem por um momento se contradiz ao longo de toda a odisseia. Descreve os dois trilhos sobre os quais a humanidade assenta: a classe abastada, prepotente e exploradora e a classe pobre, oprimida e explorada. A partir deste enquadramento histórico, um precipício intransponível: nem os de lá passam para cá, nem os de cá passam para lá.

Mas esta caricatura ideológica é também o lado menos conseguido de “Novecento”. Falta-lhe isso a que poderíamos chamar o “charme discreto” do cineasta em surpreender o espectador. Bertolucci decidiu impor em vez de propor. Se isso pode ser lido como sinal de honestidade, também pode ser interpretado como ingenuidade ou falta de senso. Assim, e visto à distância de 50 anos, Novecento” surge-nos agora irremediavelmente datado na mensagem política que encerra. Há muito que as sociedades e os regimes políticos deixaram de ser vistos alternadamente como antros de ódios ou espelhos de virtudes. O “bem” e o “mal” não se compadecem com demarcações básicas e existem em todas as gentes e em todos os cantos do mundo. Certamente que sempre assim foi. Só que no fim da 2ª Guerra Mundial as posições estavam extremadas e era muito fácil e prático estabelecer a divisão entre o mundo dos “bons” e o mundo dos “maus”.

Mas Bertolucci é mesmo um realizador de grande talento e por isso fez deste filme um painel de indiscutível beleza. Lírico e épico, viscontiano, profundo e sensível, é um poema de imagens, rostos e movimentos. Tal como o realizador referiu numa entrevista, existem quatro partes distintas na composição do filme, associadas a tantas outras estações do ano: a infância dos dois protagonistas principais (Verão), o seu re-encontro já na fase adulta (Outono), o pesadelo da tirania fascista (Inverno) e por fim a Libertação, no fim da 2ª Guerra Mundial (Primavera).

Mas se Bertolucci foi o artífice principal, o outro grande autor de “Novecento” é sem dúvida Ennio Morricone, pela música magnífica com que revestiu o celulóide. Inspirada na cultura popular e na recolha do folclore italiano, com uma integração perfeita em todo o desenrolar da história, pode-se concluir que a música de Morricone valoriza extraordinariamente o filme de Bertolucci. Quase nos arriscamos a dizer que na sua montagem sonora, estamos perante um outro filme. E isto porque, apesar de técnica e artisticamente impecável, o filme de Bertolucci, à partida vincadamente panfletário, acaba por inexplicavelmente atingir um resultado prático de sinal contrário.

Com argumento do prório Bernardo Bertolucci, do seu irmão Giuseppe e Franco Arcalli, e uma belissima cinematografia de Vittorio Storaro, o filme brinda-nos ainda com um elenco internacional de grande excelência. Com Depardieu (Olmo) e De Niro (Alfredo), ainda nos princípios das respectivas carreiras, mas a encabeçarem composições de personagens inesquecíveis. Donald Sutherland e Laura Betti (nos pérfidos Attila e Regina), Burt Lancaster e Sterling Hayden (nos decanos Alfredo e Leo Dalco) ou ainda as sensuais Dominique Sanda e Stefania Sandrelli (Ada e Anita).
“Novecento” foi estreado em Itália na “Mostra de Cinema de Veneza”, em Agosto de 1976. Em Lisboa a estreia ocorreu no dia 12 de Fevereiro de 1977, em dois cinemas: São Jorge (1ª parte) e Mundial (2ª parte). Lembro-me de ver as duas partes no mesmo dia - matiné no São Jorge e soirée no Mundial - tal a ânsia de consumir sem demoras aquele grande acontecimento cultural. Nos EUA, e para não fugir à regra, o filme foi alvo de censura e drasticamente reduzido a 4 horas, Mais uma vez os americanos não puderam assistir nas salas de cinema à versão original apresentada na maioria das cidades europeias (ao longo dos anos muitos serão os filmes tornados quase que incomprensíveis para o público americano devido a este tipo de aberrações cometidas pelos produtores ou censores). Apenas em 1993, quando a versão video foi editada, tiveram a possibilidade de ver a totalidade da obra. E sómente no pequeno écran, é claro.

CURIOSIDADES:

- O orçamento inicial do filme – 6 milhões de dolares – foi comparticipado em partes iguais por três produtoras: United Artists, Paramount e 20th Century Fox. No fim da rodagem (um longo período de 14 meses, desde Julho de 1974 a Setembro de 1975) elevou-se a ceca de 10 milhões, o que o tornou o filme mais caro de todo o cinema italiano.

- A pintura que aparece durante o desenrolar dos créditios é “Il Quarto Stato”, de Giuseppe Pellizza da Volpedo.

- Donald Sutherland detestou de tal maneira o seu desempenho como o sádico Attila, que durante anos não conseguiu ver o filme.

- Mais de 12.000 figurantes participaram no filme.

DIAL M FOR MURDER (1954)

CHAMADA PARA A MORTE
Um filme de ALFRED HITCHCOCK



Com Ray Milland, Grace Kelly, Robert Cummings, John Williams, Anthony Dawson, etc.


EUA / 88 min / COR / 4X3 (1.66:1)


Estreia nos EUA a 18/5/1954
Estreia em PORTUGAL a 17/5/1955






“Dial M For Murder” estreou-se em 1954, dois anos depois de “I Confess”. 1953 foi o primeiro ano da carreira de Hitchcock (iniciada em 1922) em que o realizador não apresentou um filme. A sua primeira pausa. Em compensação, estrearam-se em 1954 duas obras fundamentais: a que agora me ocupa e “Rear Window”. Ambas tendo como protagonista feminino Grace Kelly que iria fazer com ele três filmes sucessivos (caso único) que constituem o ponto mais alto da carreira da futura princesa do Mónaco. A versão original de “Dial M For Murder” era em Três Dimensões (3D) e em NaturalVision, aproveitando as grandes novidades técnicas desses inícios dos anos 50. Quando o filme se estreou, contudo, as três dimensões estavam a revelar-se pouco convidativas para o público e, por esse motivo, o filme foi distribuído, em quase todo o mundo, “normalmente”. Hitchcock não deplorou muito esse facto. A Truffaut disse que «a impressão de relevo era sobretudo dada nas tomadas de vista em contra-plongé. Preparei um fosso para colocar a câmara ao nível do chão. Tirando isso, havia poucos efeitos directamente baseados no relevo». À época da entrevista, quase ninguém (nem Truffaut) conhecia a versão em 3D. Só nos anos 80, ela voltou a circular e veio a Portugal, pela primeira vez, numa memorável sessão na Cinemateca Portuguesa, a 20 de Março de 1982, para regressar depois algumas vezes e sempre a esta sala.



“Dial M For Murder” baseia-se numa peça de teatro que o filme segue fielmente. A grande aposta formal de Hitchcock foi não sair quase nunca do décor, filmando quase tudo no apartamento dos Wendice e sem que o espectador sinta qualquer saturação por esse facto ou, sequer, se aperceba muito dessa omnipresença dum único espaço. A Truffaut explicou a sua teoria sobre filmes baseados em peças: «Muitos cineastas pegam numa peça de teatro e dizem: ‘Vou fazer disto um filme’, ou seja começam a ‘desenvolver’ a peça destruindo a unidade do lugar e saindo do décor (...) Por exemplo, na peça um personagem vem da rua e diz ter vindo de táxi. No filme, esses cineastas mostram a chegada do táxi, as pessoas que saem do táxi, que pagam ao chauffeur, que sobem a escada, batem à porta e entram na sala. Intercalam, depois, uma longa cena que já existe na peça. Mas se um personagem conta uma viagem, aproveitam para no-la mostrar em flash-back. Esquecem-se que a qualidade fundamental da peça reside na concentração (...) Em “Dial M For Murder” só saí do décor duas ou três vezes, por exemplo quando o inspector quer verificar qualquer coisa. Pedi mesmo um chão autêntico, para que se pudesse ouvir o barulho dos passos, ou seja sublinhei o lado teatral».



Essa extrema concentração, sentida ao longo de todo o filme, não vem apenas do sublinhado do lado teatral, mas do uso de assombrosas elipses que em dois ou três planos permitem avançar consideravelmente a narrativa. Dois exemplos fundamentais. O primeiro é o início da obra. Depois de vermos o plano do telefone (o “dial M”), temos três breves sequências mudas: a primeira mostra-nos Grace Kelly ao colo de Ray Milland, beijando-se como bons marido e mulher, a segunda mostra-nos Grace Kelly a ler no jornal (que lemos com ela) a notícia da chegada de Robert Cummings. Olha furtivamente para o marido, como quem tem medo de ser surpreendida. Encadeado rápido e terceira sequência com Grace Kelly ao colo de Robert Cummings (amante dela), beijando-se também, em total simetria com o plano do casal. Em menos tempo do que leva a contar e sem palavras, o espectador está informado da relação triangular e do adultério. Fica a saber também que Grace Kelly julga que o marido não sabe, o que depois é desenvolvido na conversa entre ela e Cummings.



O segundo exemplo é a sequência do tribunal. Quando as suspeitas se começam a acumular sobre a protagonista e logo após a saída de casa para a esquadra, afim de prestar declarações, intervém essa brevíssima sequência fortemente onírica (cores intensíssimas e totalmente irrealistas dos planos de Grace e do juíz) em que sabemos da condenação à morte. Mas o processo é tão inusitado e a sequência tão irreal que o espectador é levado a pensar num pesadelo de Grace até voltar ao apartamento (sequência entre Milland e Cummings) e ser informado que tudo aquilo já de facto aconteceu. É uma genial passagem do segundo ao terceiro acto da peça, que preserva, como Hitchcock disse, a unidade da emoção («Se tivesse mostrado a sala do tribunal e o processo, o público pensaria que um segundo filme estava a começar»).




Fundamentalmente, “Dial M For Murder” é, uma vez mais, uma história de transfert de culpabilidade. Grace Kelly sente-se culpada (da sua relação com Cummings) desde o início e isso lhe permite assumir o crime que involuntariamente cometeu, ajudando o plano de Ray Milland. Mais uma vez os beneficiários do crime são os “inocentes” Cummings e Kelly (que podem finalmente casar e ter muitos meninos) e o culpado (Milland) nada lucra. E saltará à vista do espectador a semelhança do pacto Milland-Dawson com o pacto Walker-Granger de "Strangers On a Train" (Ray Milland como Farley Granger é um jogador de ténis). Uma vez mais também o espectador é levado a identificar-se com o criminoso. Na famosa sequência do telefonema e da morte falhada de Kelly (vítima transformada em assassina) sofremos com o fatídico atraso de Milland (o relógio parado) e desejamos, tão intensamente como ele, que o plano não falhe. A nossa expectativa é ver o crime e só não nos sentimos inteiramente defraudados porque de facto o vemos, só que assistindo à morte de Dawson em vez da de Kelly.



Mas Hitchcock brinca muito mais com o espectador. A suprema astúcia é a armadilha final estendida a Milland, com o “filme mudo” (comentado pelo inspector) em que seguimos da janela do apartamento o raciocínio de Milland a propósito da chave. Como o inspector receamos que Milland não perceba o acontecido, como o inspector exultamos quando ele bate na testa e volta atrás. Colocados no “ponto de vista de Deus” somos os justiceiros, saboreando essa inultrapassável partida do destino. E quem estiver atento reparará em mais um requinte: tanto Milland como o inspector se enganam àcerca do momento em que a chave foi posta debaixo do tapete (julgam que Dawson a deixou lá antes de entrar na casa, ao contrário do que estava combinado). Só nós, espectadores, os únicos que vimos, sabemos que não foi assim e que Dawson pôs lá a chave, quando, por causa do atraso do telefonema, ia a sair do apartamento. Dawson não errou. Toda a culpa veio do relógio parado, momento fatal que desarticulou o plano. Dele todos foram joguetes, como nós também, sempre suspensos da inconcebível maestria deste filme e do inexcedível rigor da sua mise-en-scène. (João Bénard da Costa)



CURIOSIDADES:

- Adaptado de uma peça da Broadway que estreou no Teatro Plymouth, em Nova York, na quarta-feira, 29 de outubro de 1952, e teve 552 apresentações. Na produção original, Maurice Evans interpretou Tony Wendice. Neste filme, John Williams e Anthony Dawson recriaram seus papéis teatrais do Inspetor-Chefe Hubbard e do Capitão Lesgate.

- Alfred Hitchcock havia escolhido um robe caríssimo para Grace Kelly usar ao atender o telefone. Kelly se opôs e disse que nenhuma mulher vestiria um robe daqueles só para atender o telefone enquanto dormia sózinha; ela atenderia de camisa de dormir. Hitchcock concordou e gostou do resultado das filmagens, permitindo que Kelly tomasse todas as decisões de figurino para os filmes subsequentes.

- Filmado em 3D, o que explica a prevalência de tomadas em ângulos baixos com lâmpadas e outros objetos entre o público e o elenco. Houve apenas um breve lançamento original em 3D, seguido por um lançamento convencional "plano". A crítica do New York Times mencionou que o filme estreou com o lançamento "plano" no Paramount Theater, em Nova York. A versão em 3D foi relançada em 1980.



quarta-feira, agosto 27, 2025

THE SECRET OF SANTA VITTORIA (1969)

O SEGREDO DE SANTA VITÓRIA
Um filme de STANLEY KRAMER


Com Anthony Quinn, Anna Magnani, Virna Lisi, Hardy Krüger, Giancarlo Giannini, Sergio Franchi, Patrizia Valturri, etc.


EUA / 139 min / COR / 16X9 (2.35:1)


Estreia nos EUA (L.A.): 17/10/1969
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.): 7/6/1970 (teatro Manuel Rodrigues)

Italo Bombolini: There is no wine!


Stanley Kramer (1913-2001) nunca foi um nome consensual junto dos críticos de cinema. Na verdade, foram poucos, muito poucos os elogios recebidos ao longo da sua carreira de realizador, apesar dos 24 prémios que recebeu em diversos festivais de cinema. Nunca ganhou o Óscar, é certo, mas foi nomeado 3 vezes como director pela Academia. Kramer começou por ser produtor, tendo aliado essa faceta à de director nos meados dos anos 50, mais concretamente com o filme “Not As a Stranger”, em 1955, que teve como consequência a apresentação de obras, muito do agrado do público. Relembramos alguns títulos: “O Julgamento de Nuremberga” (1961), “O Mundo Maluco” (1963), “A Nave dos Loucos” (1965), “Adivinha Quem Vem Jantar” (1967) ou este “O Segredo de Santa Vitória” (1969), deixaram na década de sessenta a sua indelével marca.



Uma constante na maioria dos seus filmes foi a presença de actores e actrizes cuja qualidade esteve sempre bem acima da média. Aliás, lembro-me ainda que filme com a sua assinatura era sinónimo quase sempre de grandes representações. “O Segredo de Santa Vitória” não é excepção. Temos direito a uma das mais brilhantes interpretações de Anthony Quinn (num papel que lhe serviu que nem uma luva), muito bem coadjuvado pela tempestuosa Magnani, a bela Virna Lisi ou Hardy Krüger, o meu alemão favorito de tantos e tantos filmes.



“O Segredo de Santa Vitória” começa logo após a substituição de Mussolini no poder, em 1943. As forças aliadas ainda não tinham começado a invasão de Itália, pelo que se seguiu um período de anarquia, em que a Guerra estava irremediavelmente perdida. O exército alemão começa aos poucos a retirar-se de Itália, mas, como acontece nestes casos, os invasores querem sempre lucrar e levar consigo tudo quanto possam carregar. Vão por isso andar de aldeia em aldeia à procura de eventuais proveitos. Santa Vitória é uma aldeia pobre como tantas outras, em que os seus moradores viviam do que a terra lhes dava. Só que neste caso particular a grande maioria das plantações eram vinhas a perder de vista e os aldeões tinham muito orgulho nas suas magníficas castas, que davam até para exportação. Quando sabem da vinda dos alemães, tratam de esconder cerca de 1 milhão de garrafas usando uns túneis romanos que depois serão convenientemente selados.



Bombolini (grande, grande Anthony Quinn) é um dos bêbados da cidade, que é casado com a temível Rosa (Anna Magnani numa personagem bem característica da sua longa carreira). Por ter ousado subir ao topo do moinho para apagar uma inscrição que refere que “Mussolini tem sempre razão”, Bambolini, que alguns meses antes a tinha lá escrito, é ovacionado pelos seus conterrâneos, que lhe conferem o cargo de prefeito da vila. Ou seja, um bêbado inveterado, que de um momento para o outro se vê pela primeira vez na vida como alguém de responsabilidade, que pode efectivamente ajudar os seus conterrâneos. Após algumas ideias falhadas, a solução encontrada é o transporte das garrafas mão a mão em quatro longuíssimas filas.



Depois da nova garrafeira bem apetrechada e melhor guardada, começa a segunda parte do filme, com a chegada dos alemães. Hardy Krüger é o oficial responsável e de início tudo corre bem no meio de muita galhofa. Mas a boa disposição dos aldeões não se ajusta ao facto de terem fornecido aos alemães cerca de 300 mil garrafas e Van Prum (a personagem de Krüger) começa a desconfiar que está a ser enganado, que existirão muitas mais garrafas escondidas. Mas onde? Começa assim o jogo do gato e do rato, ao qual dois oficiais da temível SS vêm dar a sua autoritária ajuda. Mas será que a unidade de gente simples consegue enganar os poderosos alemães? É óbvio que sim, ou o filme não faria qualquer sentido. “O Segredo de Santa Vitória” perdeu um pouco da sua originalidade ao longo dos anos, mas, sobretudo para quem nunca o viu, permanece um bom entertenimento e sobretudo a possibilidade de ver em acção grandes actores do passado.






CURIOSIDADES:

- A cidade italiana de Santa Vitória, na vida real, não pôde ser usada para este filme porque se modernizou demais desde o período da Segunda Guerra Mundial, em que a história do filme se passa. Um total de 169 cidades italianas foram pesquisadas até que a ideal fosse encontrada: Anticoli Corrado. Este é um município da província de Roma, na região mais ampla do Lácio. A comuna está situada a cerca de 40 km a nordeste de Roma.

- A equipa italiana ficou tão perturbada com o assassinato de Robert F. Kennedy, ocorrido durante as filmagens, que dedicou uma hora extra de trabalho em sua memória. A carta do sindicato dos trabalhadores italianos dizia: «A melhor maneira de honrar a memória de um homem de acção é pela acção». O produtor e director Stanley Kramer respondeu com o seguinte: «A decisão da equipa italiana de dedicar uma hora extra de trabalho à memória de Robert Kennedy não tem paralelo na história do cinema. A equipa americana em Anticoli Corrado sente-se profundamente honrada em conhecê-lo e privilegiada por ser sua colega de trabalho.»




- Segundo o filme, a estimativa exata de garrafas de vinho que o município de Santa Vitória possuía era de 1.317.000. A publicidade e o boca a boca frequentemente aproximavam esse número de um milhão de garrafas. No entanto, um dos principais posters do filme afirmava que, na verdade, havia 1.184.611 garrafas de vinho.

- Durante a cena de luta, quando Anna Magnani literalmente expulsa Anthony Quinn de casa, ela dá-lhe um pontapé com tanta força que ele quebrou o pé. O produtor e director Stanley Kramer comentou sobre isso na sua autobiografia "A Mad, Mad, Mad Mad World: A Life in Hollywood": «Ele e Magnani não se davam nada bem. É um milagre que as cenas deles tenham sido finalizadas. Ela não gostava nem um pouco dele, e na grande cena de luta deles, quando ela deveria literalmente expulsá-lo de casa, ela o fez com tanta força durante as filmagens que quebrou o pé!» Kramer acrescentou: «Ela era uma dama perfeita. Cumprimentou-me com um vestido formal, usou uma boquilha e falava inglês perfeitamente. Contou-me tudo sobre o estúdio de lá, onde faríamos algumas sequências importantes de interiores, e descreveu os aspectos comerciais e artísticos da produção cinematográfica em Roma com muita perspicácia, inteligência e classe. Pensei: "Uau, que dama ela é!" E então deu-me um aviso: "Não coma no refeitório daqui, a comida é uma merda." Foi então que fiquei a saber que ela tinha outra faceta.»



- Durante os quatro meses de filmagens na pequena vila italiana de Anticoli Corrado, vários moradores da cidade trabalharam no filme em diferentes funções, como assistentes de equipa ou como figurantes e artistas de fundo. Alguns permaneceram e moraram nas suas casas, enquanto outros tiraram férias remuneradas em troca do uso das casas durante as filmagens principais.

- O produtor e director Stanley Kramer disse sobre este filme na sua autobiografia "A Mad, Mad, Mad Mad World: A Life in Hollywood": «Imaginei o filme como uma celebração de princípios e resistência, enquanto, liderados por seu prefeito pitoresco prefeito, Bombolini , os habitantes da cidade se recusam a se submeter aos seus opressores. Eu queria que a história representasse o espírito indomável de uma cidade».



- "O Segredo de Santa Vitória" foi nomeado para dois Óscares de Melhor Montagem (William A. Lyon e Earle Herdan) e Melhor Banda Sonora (Ernest Gold). O filme ganhou o Globo de Ouro de melhor filme de comédia e foi indicado pelo comité do Globo de Ouro para mais 5 categorias: Director (Stanley Kramer), Actor de Comédia (Anthony Quinn), Actriz de Comédia (Anna Magnani), Banda Sonora Original (Ernest Gold) e Canção Original ("Stay", de Ernest Gold e Norman Gimbel).



domingo, agosto 24, 2025

FAR FROM THE MADDING CROWD (1967)

LONGE DA MULTIDÃO
Um filme de JOHN SCHLESINGER

 

Com Julie Christie, Alan Bates, Peter Finch, Terence Stamp, Fiona Walker, Prunella Ransome, Alison Leggatt, Paul Dawkins, etc.

 

UK / 168 min / COR / 16X9 (2.35:1)

 

Estreia em INGLATERRA (Londres) a 17/10/1967
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 29/3/1968 (cinemas Condes e Roma)



Gabriel Oak: «At home by the fire, whenever I look up, there you will be.
And whenever you look up, there I shall be.»


Após consultar as notas do meu amigo Sérgio Vaz, vou começar por recuar no tempo e situar a história de “Longe da Multidão”, o título com que o filme foi exibido em Portugal. Bathsheba Everdene – a protagonista do romance que Thomas Hardy começou a escrever em 1873 e foi sendo publicado em capítulos, como uma novela e anonimamente, na revista Cornhill Magazine em 1874 – é uma personagem absolutamente fascinante. É tão absolutamente fascinante que chegou ao cinema pela primeira vez em 1915, quando o autor estava vivo, passando bem e escrevendo poesia. (Thomas Hardy morreu em 1928, aos 88 anos.) Esta primeira versão para o cinema de “Far From the Madding Crowd”, de 1915, foi dirigida por Laurence Trimble, que também escreveu o respectivo argumento. Florence Turner foi a actriz que interpretou a primeira Bathseba do cinema.



Cinquenta e dois anos depois, na plenitude da década de sessenta, foi-nos apresentada a segunda Bathseba, que veio na pele de uma das actrizes mais fascinantes da História, por quem as gerações nascidas aí digamos entre 1940 e 1955 se apaixonaram – Julie Christie. A mulher sobre quem François Truffaut escreveu: «Julie é um coquetel de imperfeições fascinantes: um rosto bem animal, de loba, sobre um corpo de menina. É preciso acrescentar a sua voz, um pouco em contradição com o físico. Como se ela tivesse bebido 1.800 uísques, o que não é verdade. Não fuma, não bebe, mas rói as unhas. Seu físico é feito de contradições.»



Foi uma produção totalmente britânica; o director, John Schlesinger, já havia dirigido Julie em “Darling” (1965), e os outros três actores principais davam pelo nome de Alan Bates, Terence Stamp e Peter Finch. Ou seja, um elenco de luxo! Bathsheba Everdene não era uma dondoca, nem uma casadoira, nem passava a vida à espera de algum homem ou em função de algum homem. Era uma mulher forte, de desejos poderosos, que se orgulhava de ser independente. Uma mulher trabalhadora, capaz de meter a mão na massa e ao mesmo tempo administrar o trabalho de várias dezenas de pessoas. Uma mulher que atraiu as atenções e o amor não de um ou dois, mas de três homens.

Isso tudo tendo sido criado em 1873, em plena Era Victoriana, um tempo de muita moralidade rígida e muita censura a quem se desviava das regras vigentes. E criada por um homem que tinha então apenas 33 anos, e portanto não tinha sequer tido muito tempo para conhecer bem as mulheres (e será que algum homem se pode gabar de o ter conseguido ao longo dos séculos?). Thomas Hardy só viria a casar-se em 1874, o ano em que “Far From the Madding Crowd” apareceu em forma de folhetim. A moça, Emma Lavinia Gifford, era cunhada do reitor de uma escola de Cornwall, onde Hardy foi trabalhar como restaurador – filho de um construtor civil, tornou-se um requisitado profissional nessa arte, a mesma do personagem central de seu romance maior, “Judas, o Obscuro”. Esse grande escritor é uma das muitas provas de que a vida é mesmo cheia de surpresas. Seria extremamente difícil imaginar que um sujeito da classe média de Dorset, região do extremo Sul da Inglaterra, rural, sem uma cidade importante ou sequer média, pudesse vir a criar uma personagem que parece saída da imaginação de uma feminista nova-iorquina pós anos 1960.



“Far From the Madding Crowd” é um filme extraordinário que não só faz jus ao romance de Thomas Hardy, como também ostenta, como já se disse, um elenco soberbo. A personagem-título, Bathsheba Everdene (Julie Christie), em particular, evita cair no sentimentalismo, enquanto explora magnificamente as capacidades do seu talento como actriz. O papel varia de dominadora a insegura, de arrependida a triunfante. De mulher doce a grande dama de salão. Há também uma figura trágica: Fanny Robin (a estreante Prunella Ransome), que contribui para a profundidade do enredo com uma actuação impressionante: é engravidada pelo sargento Troy (Terence Stamp), e de seguida abandonada. Mais tarde regressa, mas para morrer, juntamente com o filho ainda dentro do seu ventre.

À medida que Bathsheba se torna adulta, três candidatos a cercam: o pastor Gabriel Oak (Alan Bates), que é o primeiro a tentar a sua sorte, logo no início do filme. Mas a sua proposta é rejeitada, Bathsheba não o ama. Ainda por cima perde todo o seu rebanho numa noite (que se despenha do alto de uma falésia, guiado por um dos cães de guarda que provavelmente terá enlouquecido para actuar desse modo) e é obrigado a partir em busca de emprego e melhores dias. Bathsheba, entretanto, herda uma propriedade de um tio e é lá que Gabriel encontra trabalho. Depois, há o Sr. Boldwood (Peter Finch), um vizinho rico e mais velho, uma figura patética com fama de não dar grande importância às questões sentimentais, mas que se apaixona perdidamente pela sua nova vizinha. De negação em negação, em adiantamentos sucessivos, Bathsheba vai recusando também as suas propostas de casamento. E por fim temos o sargento Troy (Terence Stamp), mais novo do que os seus rivais e que é extremamente popular junto ao sexo oposto. Como quase sempre acontece na vida real é tal fama que ajuda a compor o ramalhete, juntamente com uma certa áurea de canalha e cabotino. Bathsheba apaixona-se finalmente e o casamento vem de facto a acontecer. A favor de Troy pode-se referir a sua paixão por Fanny, mesmo depois de morta. A famosa cena junto ao caixão é bem paradigmática, quando Troy profere aquela terrível declaração a Bathsheba: «This woman, even dead, is more to me dear than you ever were... or are... or could be.»



Não vou contar tudo o que se segue, mas posso adiantar que a batalha com as forças da natureza naturalmente desempenha um papel, mas isso não é um fim em si mesmo: um incêndio, uma tempestade e uma doença num rebanho de ovelhas dão mais ênfase à história, criando no espectador a expectativa de um desenlace mais apropriado e, porque não, um pouco mais feliz. Nunca tendo lido o romance de Thomas Hardy, é de admitir que o mesmo seja mais pormenorizado do que o filme, e que contenha mesmo factos que aqui não são referidos. Mas é o eterno risco que corremos quando um filme é baseado numa obra literária de grandes dimensões e não temos a possibilidade de comparação. Mesmo assim, “Longe da Multidão” é um filme de grande desenvoltura (são quase três horas de projecção), muito agradável de se ver, mesmo passado mais de meio século e no mínimo justifica-se pelo retrato que nos dá do século XIX inglês. Resta ainda falar de uma cinematografia de cortar o fôlego (da autoria do futuro realizador Nicolas Roeg, que se estrearia três anos depois com “Perfomance”), por onde se passeiam as grandes emoções humanas.


CURIOSIDADES:

- Rodado em Dorset e Wiltshire, o filme ostenta uma autenticidade de época e personagens tão surpreendente que levou o designer de produção Richard MacDonald a comentar: «fazer este filme pode ter sido uma das últimas chances de filmar a Inglaterra rural como ela era em meados do século XIX». Boa parte do crédito vai para os 723 fazendeiros vizinhos e suas famílias, que foram recrutados para as cenas de multidão e pequenos papéis.

- Na versão que correu na altura da estreia em Inglaterra, foi abolida a cena da luta de galos por causa da lei inglesa que proibia mostrar cenas de crueldade com animais. Com cerca de 12 segundos, essa cena foi acrescentada quando o filme foi editado em DVD, passando, curiosamente, a durar cerca do dobro.

- Este foi o primeiro filme de John Schlesinger após o grande sucesso "Darling", de 1965. Reuniu-se com o produtor Joseph Janni, o argumentista Frederic Raphael e a actriz principal Julie Christie para porem de pé esta adaptação do livro. Raphael, um ávido apreciador dos escritos de Thomas Hardy, pode ter sido fundamental, afirmando posteriormente que, em vez de ser, como "Darling", um filme sobre "pessoas bonitas", seria "um filme sobre pessoas que realmente eram bonitas". O sucesso anterior garantiu à equipa liberdade de ação e também um grande orçamento, que Schlesinger estimou numa entrevista em cerca de 2,750 milhões de dollars. No entanto, o filme provou ser um grande fracasso de bilheteria, e Schlesinger raramente o elogiou, embora tenha gradualmente conquistado uma considerável reputação crítica.


NOTA: Vi hoje pela quinta ou sexta vez esta versão de 1967 e em seguida tentei ver a nova adaptação. E digo "tentei" porque realmente não consegui chegar ao fim. Com menos 1 hora de duração, não é mais do que um resumo desta versão, a qual, por sua vez, já era um resumo do romance original. Os factos que eram apresentados com calma, sem pressas, são aqui “despachados” num piscar de olhos, no que ousaria apelidar de “corrida louca”. Aliás, é uma característica do cinema de hoje, em que tudo é feito para ganhar o máximo de dinheiro num mínimo de tempo. E depois o casting, nossa senhora! Bem sei que substituir a radiosa Julie Christie não era tarefa fácil, mas entregar o papel principal a uma actriz sem muita graça e bastante vulgar (Carey Mulligan)? Não esquecer que a beleza da protagonista é um dos motivos principais pelo qual ela atrai o sexo oposto. E Tom Sturridge que faz de Troy? Parece um menininho de sacristia… Onde está a cabotinice e a canalhice que Terence Stamp tão bem representava? O único que realmente não destoa é o Matthias Schoenaerts no papel de Oak. Enfim, um filme perfeitamente escusado. Quem quiser ter uma boa ideia do mundo rural inglês do século XIX, embora porventura muito incompleto, deve continuar a ver (e a rever) a versão de 1967 e não perder o seu tempo com esta nova adaptação.