Um Filme de FRANK CAPRA
Com James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore, Thomas Mitchell, Henry Travers, Beulah Bondi, Frank Faylen, Ward Bond, Gloria Grahame, H.B. Warner, Frank Albertson, etc.
EUA / 130 min / PB / 4X3 (1.37:1)
Estreia nos EUA a 20/12/1946
Estreia em PORTUGAL a 30/11/1947
(Lisboa, cinema Politeama)
Não existe filme mais apropriado para o Natal do que esta pequena maravilha de Frank Capra. Ao longo das décadas foi certamente o filme mais programado pelas televisões de todo o mundo para a noite de consoada ou para o próprio dia de Natal. E é no mínimo estranho o facto de "It's a Wonderful Life" ter sido um autêntico flop comercial quando se estreou a 20 de Dezembro de 1946 - em plena época natalícia portanto - na cidade de Nova Iorque. Mas como diz o ditado, «ri melhor quem ri por último» e hoje, passados que são 68 anos (!), "It's a Wonderful Life" (por uma vez bem traduzido em português como "Do Céu Caíu Uma Estrela") aí está, com o mesmo brilho de sempre, a encantar sucessivas gerações de cinéfilos. Não serei portanto original, mas não posso deixar de o sugerir para (mais) esta quadra festiva. Se puderem, mandem vir a versão em blu-ray, que não está bloqueada (região 0), inclui legendas em brasileiro, o documentário "The Making of It's a Wonderful Life" e ainda a versão a cores do filme (esta obviamente perfeitamente dispensável). Deixo-vos com os votos de um Bom Natal e o comentário que o saudoso João Bénard da Costa fez sobre o filme em 1999.
A chance to see what the world would be like without you»
Em "The Name Above the Title", Frank Capra conta com vagar a génese deste wonderful film. Capra regressava da guerra a Hollywood e tinha que se readaptar a uma capital do cinema que mudara muito (post-guerra quente e pré-guerra fria). Um dia, Charles Koerner entrou-lhe pela porta (porta do recém inaugurado Liberty Films, que Capra fundara com William Wyler e George Stevens para continuar a ter "The Name Above the Title") com meia dúzia de páginas dactilografadas em forma de cartão de Natal que continham o script que Dalton Trumbo extraíra do conto de Van Doren Stern "The Greatest Gift". Dou a palavra a Capra: «Era a história que toda a vida procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros, que deixava perder as oportunidades da vida. Um dia, perdeu a coragem. Desejava nunca ter nascido. E esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O género de história que fará dizer às pessoas quando eu fôr velho e estiver a morrer: foi ele quem fez "The Greatest Gift"». Capra comprou imediatamente os direitos mas encarregou o casal Hackett - Albert Hackett e Frances Goodrich - (que tinham feito a série do "Homem Invisível" e depois escreveriam musicais como "The Pirate", "Summer Holiday", "Easter Parade", "Give a Girl a Break", "Seven Brides for Seven Brothers" ou a série dos "Pais da Noiva") de reescrever a história. Para o protagonista escolheu imediatamente "o único actor que podia fazer aquele papel": Jimmy Stewart, como Capra, no seu primeiro filme post-guerra. E rodou "It's a Wonderful Life" em quatro meses (de Abril a Agosto de 46) "num orgasmo ininterrupto", Quando o concluiu estava firmemente convencido de ter feito «the greatest film I have ever made. Better yet I thought it was lhe greatest film anyboby ever made».
Para mim, "It's a Wonderful Life" é paixão antiga desde que o vi no Politeama, tinha eu doze anos. E muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado da moral desta fábula (corn ou not corn) e a tenha contado a gente que repete, com James Stewart, que «era melhor não ter nascido». E nunca consegui deixar de chorar no tear-jerking finale, «admittedly one of the most sentimental endings of all time» (estou a citar Danny Peary). Mas se esse final, após a "ressurreição" de James Stewart, com "The Bells of Saint Mary" no cinema da terra (second feature), a dedicatória no Tom Sawyer, a música de Natal, os milhões de merry christmas, os milhares de dólares a cair no cesto e os milhares de amigos a entrar é, de facto, o mais tear-jerking e o mais natalício dos finais de um filme (que deve ser o que mais vezes foi programado pelas televisões para a noite de Natal) não penso, como a maioria dos críticos, que este filme seja o mais optimista dos filmes de Capra. Já em tempos comparei a estrutura das suas obras precedentes (sobretudo "Mr. Smith Goes to Washington") com a dos westerns clássicos. O cowboy que veio parar a uma cidade de "duros" , apanha muita "porrada" e no final vence o "mau" da fita, no último duelo.
Nesses filmes, esse herói, chamasse-se Gary Cooper ou James Stewart, vencia sózinho ou acompanhado por uma minoria de "bons", a princípio aterrorizada e depois, à medida que o "herói" crescia, mais desenvolta nos seus auxílios. Aqui, neste filme com que se encerra o ciclo do great old Capra, James Stewart vence também, mas precisa de uma ajuda de que até aí jamais precisara: a do anjo de 293 anos chamado Clarence Goodbody que, de resto, desceu à terra não apenas para o ajudar, mas para ganhar as asas que em todo esse tempo ainda não tinha conseguido alcançar. O personagem é prodigioso, Henry Travers é-o também, mas essa "descida à terra" não nos deve fazer esquecer que todo o filme é visto do ponto de vista do céu. Ao princípio estamos na terra («You are now in Bedford Palls») na mesma noite de Natal do fim, com a neve a cair e os sons do Natal.
Ouvimos em off orações e a câmara vai até às estrelas, onde Clarence trata Deus por "Sir". Deus tem uma voz de patrão, firme e dura, manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele se vestir. E quando ele está "sentado" (a câmara sempre nas estrelas, sem personagens) convida-o para um "bom filme": a vida de George Bailey desde o dia, aos sete anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado, até à noite de Natal que é tempo de todo o filme. Ao princípio, não se vê nada (quem não tem asas, não vê dos outros planetas) até que a imagem foca "o começo do filme". E quando passamos da infância à idade adulta, de Bobby Anderson a James Stewart, Deus diz a Clarence «Take a good look on him» e o plano imobiliza-se em paralítico com James Stewart de braços todos abertos, no arquétipo da imagem capriana, que também no cinema nunca mais voltou a ter (depois é o James Stewart de Mann, de Hitchcock, de Ford, tão genial como sempre, mas bem diferente como personagem). É como se Capra nos dissesse também que nunca mais ninguém o iria ver assim, como fora em "You Can't Take It With You" ou como fora em "Mr. Smith".
A história da vida de George Bailey é a história de coisas tão bonitas, como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito, o graduation ball de 1928, com James Stewart a dançar o Charleston como Fonda dançava a valsa no "Young Mr. Lincoln"; aquele espantoso mergulho colectivo; Donna Reed "the prettiest girl in town"; o roupão caído, ela atrás dos arbustos e a morte do pai; os discursos de Stewart (sempre vagamente demagógicos); o "point me in the right direction"; o telefonema a três e o beijo a dois (a câmara sem se mexer, num dos mais prodigiosos planos que alguma vez alguém assinou); a "wedding night"; e o beijo de Ernie a Bert (essa sequência é inadjectivável); James Stewart, o charuto e o aperto de mão a Barrymore; a guerra em filigrana, e tanto mais. Mas é também, em surdina, o elogio do sacrifício e por breves apontamentos (um olhar de Stewart para o irmão ou para a mãe, o espantoso e patético personagem de Thomas Mitchell) a insinuação que basta um leve toque e podemos ver o negativo de tudo isso. E a noite da inexistência de Stewart é esse negativo.
Os mesmos geniais secundários, fraternais e solidários, "mudam de filme" e quem vence são outros arquétipos deles, patentes nos casos de Beulah Bondi, Ward Bond, Frank Foylen. Aparentemente, esses eram os que não tinham razão para mudar. Se percebemos que o farmacêutico tivesse ido parar 20 anos à cadeia, não fosse George, se percebemos que o irmão tivesse morrido, não fosse George, se percebemos (já mais forçadamente) que Donna Reed tivesse ficado solteirona e de óculos, não fosse George, porque mudaram tanto todos os outros, porque são todos tão agrestes e rudes? E - o que é mais - porque mudou a cidade toda (mudou até de nome) convertida num vasto lupanar, entre strip-teases e luzes agressivas? E por que é que o único personagem que George não re-visita é Lionel Barrymore, o único que não podia ter mudado? Pode um homem só transformar tanto a vida de todos? Capra diz-nos que sim, mas diz-nos que sim, não no real, mas no "filme mostrado" por Deus a Clarence e, depois, na noite que resultou do "truque" do Anjo. De certo modo, "It's a wonderful life" (mas no cinema...), "it's an awful city", mas com batota.
É por isso que a explosão final é tão forte. Porque tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisa de anjos e estrelas) e encarna naquela noite de Natal, em que a presença do Anjo é apena a de uma discreta campainha, sob a força do plano de George com os filhos ao colo e dos dólares que vêm de tudo e de todos. Para um tal hino à vida e ao amor (a palavra final da dedicatória de Clarence) foi preciso ir até às estrelas. Forçar um pouco a mão ao destino, para melhor tentar a liberdade. Não se trata de viajar no passado para descobrir a inelutabilidade dele, mas de não sair da mesma noite, para mostrar como o futuro a modifica. Aparentemente construído em flashback, este filme desfila como as imagens dele. A vida na terra, mesmo em Bedford Falls, é bem mais maravilhosa e mais comovente do que a vida dos anjos que a deixam (apesar das asas ganhas) com uma secreta nostalgia. No céu, não há Natais. Esse é o lote dos homens e é por isso que "it's a wonderful life". Por mais simpático que o anjo seja, não temos pena nenhuma de o ver desaparecer. O nosso amor é George Bailey - James Stewart, em paralítico ou na agitação frenética da imensa alegria final.
(João Bénard da Costa, 1999)
CURIOSIDADES:
- A primeira versão do filme terminava com a canção "Ode to Joy", que depois foi substituída por "Auld Lang Syne"
- James Stewart estava nervoso quando filmou a cena do beijo ao telefone, com Donna Reed. No entanto, o actor acabaria por fazer a cena num único take e de tal modo persuasivo, que a cena teve de ser encurtada para evitar problemas com os censores da época.
- Jean Athur foi a primeira escolha de Frank Capra para o papel de Mary. No entanto a actriz já se encontrava comprometida para uma peça na Broadway e teve de declinar o convite
- A piscina situada por baixo do ginásio existia na realidade (não foi trucagem), e pertencia ao Liceu de Beverly Hills, em Los Angeles
- Dalton Trumbo, Dorothy Parker e Clifford Odets colaboraram todos eles no argumento do filme, sem que os seus nomes alguma vez tenham sido citados.
- Em 2006, o American Film Institute votou "It's a Wonderful Life" como o filme mais inspirador de todos os tempos. No ano seguinte, o mesmo AFI classificou-o em 20º lugar na lista dos melhores filmes de sempre
- Apesar de centrado na época natalícia, o filme foi rodado em pleno Verão, debaixo de altas temperaturas
- Filme favorito de James Stewart e Frank Capra
- Frank Capra ganhou o Globo de Ouro pela realização e o filme teve 5 nomeações para os Óscares, nas categorias de Director, Filme, Actor Principal, Som e Montagem