Um filme de STANLEY KRAMER
Com Spencer
Tracy, Sidney Poitier, Katharine Hepburn, Katharine Houghton, Cecil Kellaway,
Beah Richards, Roy Glenn, Isabel Sanford, etc.
EUA / 108 min
/ COR /
16X9 (1.85:1)
Estreia nos
EUA: NY, 11/12/1967
Estreia em PORTUGAL: Lisboa (cinema
Monumental), 20/7/1968
Estreia em MOÇAMBIQUE: LM (cinema
Dicca), 8/11/1970
Antes do mais, convém lembrar que “Adivinha Quem Vem Jantar” é um filme
extremamente datado, cuja visão, hoje em dia, terá de levar em conta tal
factualidade. Meio século volvido, a grande maioria dos casamentos
inter-raciais já se encontram despidos, felizmente, dos preconceitos e dos
problemas de índole moral que constituem o cerne deste filme. Dito isto, e
embora reconhecendo a mestria da realização de Kramer, penso que o filme não consegue ser portador de um impacto
por aí além, na medida em que são atribuídos ao personagem negro, John Prentice
(Sidney Poitier) características que
o singularizam, minimizando simultaneamente os problemas que a situação
apresentada no filme traria na realidade. Com efeito, Sidney Poitier encarna a figura de um médico distinto e famoso,
com várias obras publicadas, sem problemas de ordem financeira, íntegro,
simpático, honesto, enfim, com os atributos do noivo que todos os pais
desejariam ter para as suas filhas casadoiras. Os pais de Joey (Katharine Houghton) – bem colocados na
sociedade, ricos e prósperos – limitam-se a lutar contra o preconceito racial
que Kramer diz (através do seu
filme) existir em qualquer pessoa – até nas de ideias liberais, como é o caso dos
Drayton (Spencer Tracy e Katharine Hepburn). Matt e Christina
acabam por aceitar a escolha da filha, mas não naturalmente. Aceitam-na porque John, apesar de ser negro, é médico e possui qualidades e características
que não se encontram na maior parte dos brancos.
Aliás, analisando os vários personagens,
logo nos apercebemos do seu reaccionarismo. Joey é uma jovem alienada e sem
noção do que se passa à sua volta; vivendo num país de racistas como os EUA
(constatação ainda hoje verdadeira, apesar de todas as mudanças introduzidas
nas últimas cinco décadas, que levaram Barack Obama ao cargo mais importante da
América e, seguramente o mais influente do mundo), ela acredita que não
existirão problemas de maior se casar com um negro. Tal ingenuidade é pouco
credível e constitui um atributo de lirismo absurdo. Prentice, por seu turno,
de negro só tem a cor da pele, pois em tudo o mais se acha perfeitamente
enquadrado no “sistema” americano. Com toda a sua inteligência, não consegue
ver que só é (mais ou menos) admitido na sociedade devido a ser um indivíduo
excepcional. Como pode alguém metido num clima destes continuar a pensar “como
um homem” (como ele próprio o afirma) e não “como um negro”? A integração que a
sua personagem ambiciona, revela-se uma pura e simples mistificação. Também a
empregada Tillie (Isabel Sanford) reage contra o casal. Ela não compreende sequer como é que a sua menina (que ajudou a crescer) se foi
interessar por um homem da sua própria raça. É como se ela criasse um papel
para si mesma, de submissão, de inferioridade, interiorizasse essa posição e
acreditasse piamente nela.
Seria muito mais inquietante e mais "perigoso" um simples negro (por exemplo, um operário, um motorista de táxi ou, porque
não, um polícia – e isto sem menosprezo por estas classes) que desse provas de
uma dignidade, de uma inteligência e de uma coragem, que nada tivessem de
excepcional. Esse “homem como todos os outros”, diferente apenas por ser negro,
encontrava-se muito pouco na produção de Hollywood daquela época. Consciente ou
não da mistificação de que ele próprio era porta-voz, Sidney Poitier era uma das raríssimas excepções, ao representar quase
sempre personagens exemplares de negros que triunfam sobre a hostilidade que
encontram pela frente. Filmes como “Blackboard Jungle / Sementes de Violência”
(1955), “Porgy & Bess” (1959), “Liles Of The Field / Olhai os Lírios do
Campo” (1963), “A Patch Of Blue / Uma Réstea de Azul” (1965), “In The Heat Of
The Night / No Calor da Noite” (1967) ou este “Guess Who’s Coming To Dinner / Adivinha Quem Vem Jantar”,
mostram-no triunfando de todos os obstáculos com teimosia e obstinação e
convencendo as pessoas pela evidência da sua rectidão e dos seus méritos.
Lembremos o que o próprio Poitier referiu numa entrevista da
época: «Durante muito tempo os negros
tiveram de se contentar, no cinema, com papéis de criados desorientados, de
motoristas ou de dançarinos. Pela primeira vez um actor negro está em condições
de representar a figura de um "herói" aos olhos do público. Isso
cria-me obrigações. Entre os limites estreitos daquilo que me dão a escolher,
quero apenas aceitar papéis que inspirem orgulho aos espectadores negros,
dando-lhes ânimo para se levantarem das suas cadeiras, e que imponham aos
espectadores brancos a imagem de um negro digno de apreço, cuja autoridade
moral ponha em causa todos os seus preconceitos.» Com um rigor lógico que
não é possível contestar, o actor prosseguia:
«As minhas personagens são estereotipadas? De acordo; mas quantas e
há quanto tempo? Só por mim, tenho de fazer esquecer e inverter sessenta anos
de estereótipos humilhantes que apresentavam o negro como um ser inferior,
servil e cobarde. Ainda não estamos livres, portanto, das nossas obrigações. E,
depois, é preciso notar que estou sózinho. Se houvesse mais actores negros de
primeiro plano, não me importaria de representar outros papéis. Mas enquanto
for o único representante da colectividade negra no cinema, nunca representarei
nada que possa envergonhar um negro, ou que permita encorajar os preconceitos
dos brancos.» Não é possível ser
mais claro. O crítico Pierre Billard, num artigo publicado no nº 872 de
L'Express, em 4 de Março de 1968 via em Sidney
Poitier «o anjo puro e radioso da coexistência pacífica e da integração na
felicidade.»
Deixando agora de parte a desonestidade do
argumento, da autoria de William Rose, que desse modo falseia a realidade, há que reconhecer que “Adivinha Quem Vem Jantar” apresenta os
seus maiores trunfos no campo do brilhantismo dos diálogos e, sobretudo, na
força dos seus intérpretes (ressalvando a pãozinho-sem-sal
que é Katharine Houghton). Poitier, Roy Glenn e Beah Richards
(os pais de John), Cecil Kellaway
(Monsenhor Ryan) e sobretudo Tracy e
Hepburn, têm neste filme actuações
memoráveis. Então o longo monólogo final de Spencer Tracy é um dos momentos mais comoventes da história do
cinema. Não propriamente pelo seu significado no filme, mas sim pela relação
directa com a vida real dos protagonistas. Spencer
e Katharine tinham o caso mais longo
de Hollywood, desde que se conheceram em 1941, na rodagem do filme "Woman
Of The Year”. O facto de ser casado, não impediu Spencer de manter um longo relacionamento com Katharine, que se estendeu para as telas de cinema, uma vez que os
dois fizeram nove filmes em conjunto.
Toda a Hollywood (e não só) estava ao corrente da ligação extra-matrimonial, mas também ninguém lhe atribuía grande importância. Para o grande público, o que contava era a excelência dos dois actores - as pessoas adoravam vê-los juntos no écran - e não as suas vidas privadas. Na época da rodagem de “Adivinha Quem Vem Jantar”, Spencer estava seriamente doente, com
diabetes e ainda a recuperar de um forte ataque cardíaco, sofrido em 1963.
Nesses quatro anos manteve-se afastado do público, por temer uma recaída. Finalmente
veio a oportunidade de rodar este filme com Katharine (que se ocupava dele – como sempre o fez – quer em casa
quer nos estúdios, dedicando-lhe practicamente todo o seu tempo) e Spencer Tracy achou que já era tempo de
um regresso ao mundo do cinema.
Na cena final, após uma conversa com a mãe
de John no jardim, Matt convoca todos para o salão para lhes transmitir a sua
opinião sobre o casamento da filha com John. Ainda com as palavras de Mrs.
Prentice nos ouvidos (que tinha duvidado da sua capacidade em se lembrar de
amar alguém como os seus filhos se amavam), Matt, no seu longo discurso,
pronuncia as seguintes palavras: «…and
there is nothing, absolutely nothing that your son feels for my daughter that I
didn’t feel for Christina. Old? Yes! Burned-out? Certainly! But I can tell you
the memories are still there: clear, intact, indestructible; and they’ll be
there if I live to be a hundred ten. Where John made his mistake I think was in
attaching so much importance to what her mother and I might think. Because, in
the final analysis, it doesn’t matter a damn what we think. The only thing that
matters is what they feel, and how much they feel, for each other. And if it’s
half of what we felt, that’s everything.»
Há
uma troca de olhares no final destas palavras e já não são Matt e Christina que
estão lá: deram lugar a Spencer e Katharine. E as lágrimas de Christina
também já não são dela, são de Katharine.
O público sente que o que acabou de ver no écran foi a despedida real dos dois
actores e não apenas uma declaração de amor entre os personagens. Duas semanas
depois Spencer Tracy (na altura com 67 anos), viria
a falecer, logo após a conclusão das filmagens. Katharine Hepburn nunca conseguiu ver o filme, depois de concluido.
Continuaria a filmar, até 1994, sobretudo para televisão, mas nunca mais teve
um companheiro na vida (recorde-se que ela se tinha divorciado do seu primeiro e único
marido, em 1941 – esteve casada 12 anos -, quando conheceu Spencer Tracy). Viria
a falecer 36 anos mais tarde, a 29/6/2003. Tinha 96 anos.
CURIOSIDADES:
- Katharine Houghton era sobrinha de
Katharine Hepburn
- Quando Joey pergunta a Tillie, «Adivinhe
quem vem para jantar?», a resposta mal-humorada de Tillie, era «O reverendo
Martin Luther King». Com o assassinato do líder religioso, em Abril de 1968, a
frase foi retirada do filme, só sendo incluída de novo com o lançamento em DVD.
- “Guess
Who’s Coming To Dinner” teve 10 nomeações para os Óscars de
Hollywood, tendo vencido em 6 categorias: Filme, argumento, actor principal
(Spencer Tracy), actriz principal (Katharine Hepburn), actor secundário (Cecil
Kellaway) e actriz secundária (Beah Richards). Ver outros prémios aqui.
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