domingo, junho 19, 2011

ONLY ANGELS HAVE WINGS (1939)

PARAÍSO INFERNAL




Um filme de HOWARD HAWKS


Com Cary Grant, Jean Arthur, Thomas Mitchell, Rita Hayworth, Richard Barthelmess, Allyn Joslyn, Sig Ruman, Victor Kilian


EUA / 121 min / PB / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 12/5/1939 (Nova Iorque)
Estreia em PORTUGAL a 11/4/1940 (Lisboa)


Tex Gordon: «Calling Baranca! Calling Baranca!»

“Only Angels Have Wings” é um filme que exige tanto dos nossos olhos como dos nossos ouvidos. Quem se ficar por um só desses sentidos perde tudo. Ou melhor: perde o resto da frase, como a perde quem não concluir que «se só os anjos têm asas», só os anjos podem voar: os homens não. E, no entanto, Only Angels Have Wings” é um filme sobre aviadores e aviões. E passa-se todo ou no ar (as mais belas sequências aéreas jamais filmadas) ou num bar. Um bar situado em Barranca, um porto da América do Sul, no fundo mais fundo de uma das gargantas da cordilheira dos Andes. Muito se tem de subir dessa fossa nevoenta para as alturas, sobre os picos mais picos das altíssimas montanhas.
Quase logo ao princípio, Bonnie Lee (JeanArthur), a mulher que veio do mar e das brumas, como num filme de Sternberg, pergunta ao personagem mais bonito da história do cinema, que usa o belo nome de Kid (Thomas Mitchell): «Why do the men fly?» E Kid responde­ -lhe: «I've been in it twenty two years, Miss Lee. I couldn't give you an answer that makes any sense.» No fim, Geoff, o «boss», aquele a quem os seus homens chamam «Papa» (Cary Grant), depois da morte de Kid, repete, como se falasse com os botões dele: «He'd been in it twenty two years.» Mas não acaba a frase. Se para ele, como para nós, tudo começa a «fazer sentido», esse sentido é tão críptico como o do amor ou o da morte. Ou o do cinema.
Foi a propósito deste filme que Hawks narrou a Bogdanovich «a wonderfitl story». Um piloto de guerra mexicano contou-lhe que ti­nha ido jantar com uma rapariga muito bonita, casada há um ano com um tipo que tinha uma queimadura na cara e uns olhos muito gran­des. A dada altura, apareceu um amigo, com uns copos a mais, que disse à rapariga: «Faz hoje um ano, estávamos todos aqui na tua festa de casamento.» À 1 da noite, puseram-nos na rua e foram para a cama. À 1 e 10 «levantaram voo». Um bocado mais tarde, recomeçaram. E, perante o espanto e depois a fúria da jovem, contou-lhe tim-tim-por­ -tim-tim a história toda da noite de núpcias dela. «Meu filho da mãe, estiveste a espreitar!» O outro jurou que não e puxou de um gráfico que umas máquinas alemãs faziam naquela altura e se usavam nos aviões. Por esse gráfico, poderia ficar a saber-se quando é que se ligava o mo­tor, quando é que começavam os solavancos do arranque, quando é que o avião levantava voo, quando é que ganhava altura, quando é que a perdia, etc, etc. O que ele e outros amigos, por brincadeira, fi­zeram, foi, às escondidas deles, meter o gráfico debaixo da cama do casal. A mulher desatou a rir, pediu-lhe o gráfico e, vaidosíssima, pendurou-o em casa, emoldurado. «Foi desta história que tirei a minha história para Only Angels Have Wings”, disse Hawks.
Não há noite de núpcias nem há gráficos em Only Angels Have Wings”. Mas os quatro grandes voos do filme (dois que acabam bem e dois que acabam mal) pontuam, com o ruído dos motores, tudo o que se passa entre as cinco personagens principais do filme. Além de Bonnie, Geoff e Kid, Kilgallan (Richard Barthelmess), o homem que se apresenta sob falso nome e com mau passado e Judy (Rita Hayworth, idem, idem, aspas, aspas). E Only Angels Have Wings” é o gráfico, visual e sonoro, de quando arrancam e quando pousam, quando levantam voo e quando se vão abaixo. Há as personagens que não gostam de falar, têm ouvido apura­díssimo e se dão mal com a luz (quase todas as personagens masculi­nas). Há as personagens que querem contar tudo e que se lhes diga tudo, interpretam mal os sons e de noite vêem tudo pardo (quase to­das as personagens femininas). A guerra de sexos está declarada e é tão simples ou tão complexa como tudo isto.
Volto ao princípio e à Jean Arthur marlénica. Confunde dois aviadores que a tentam engatar com dois nativos espanhóis. Quando descobre o erro, confraterniza e, no tal bar do holandês menos voador do mundo (Sig Ruman) combinam comer uns bifes. Ordem para um dos aviadores -Joe - partir em voo de rotina. Promete voltar daí a meia hora e pede que lhe guardem o bife. Mas não era «good enough» e, no meio do nevoeiro, atrapalha-se e estampa-se, sem ver as luzes da pista. É a terceira morte em dois meses e, como se diz noutro filme de Hawks (“The Lost Patrol”), «hurrah for the next man who dies». Em vez de lágrimas, copos. 
Depois do silêncio, alguém toca ao piano “Send a Word to Mother”. Revolta e indignação de Bonnie, perante aqueles homens «sem sentimentos». Revolta que aumenta quando vê Geoff sentar-se à mesa e bater-se com o bife destinado a Joe. «Who is Joe?» pergunta Geoff. Ela explode. Mas quando percebe, pouco depois, como era es­túpido o seu melodramatismo (vira Joe 5 minutos, aqueles homens eram amigos dele há 5 anos) a metamorfose não se exprime em pala­vras mas em passagem musical. Junta-se ao grupo e ataca ao piano, muito alto, “Some of These Days” e depois passa para o “Liebestraum” de Liszt, prelúdio à primeira cena de amor-guerra Bonnie-Geoff. A luz muda toda, há um fulgurante raccord com o relógio (o tempo) e todo o passado (esse passado de que quase nunca se fala no filme) se convoca.
Alguém traz os objectos retirados do corpo de Joe. Geoff mostra­-os a Bonnie (só então começam os grandes, grandes planos) e diz-lhe que, se ela quiser, pode ficar com um souvenir. Bonnie olha com aten­ção e escolhe um bonito anel. «Você tem bons olhos», diz, mordaz, Geoff. Ela (grande plano) olha-o severamente e em silêncio. Volta-lhe as costas e dá o anel à nativa que fora namorada de Joe e que, a um canto, foi a única que, durante essa longa sequência, sempre chorou baixinho, sem dizer nada. Grande plano de Geoff, assombrado. Quem não tivera bons olhos fora ele. 
E quando Bonnie, depois de todos se te­rem ido embora, volta para o pé dele, pergunta-lhe que mulher lhe fez tão mal que o tornou assim. Geoff não responde e pede-lhe um fósforo. Bonnie, que já reparou que ele é homem que nunca tem lume, observa­ -lho. E ele responde que não gosta de ter coisas que se gastem. «Fósforos, modelos, dinheiro». «Mulheres?», devolve-lhe Bonnie. E é um dos me­ lhores exemplos desses diálogos que Hawks dizia ter aprendido com Hemingway. «Hemingway chamava-lhes oblíquos. Eu chamo-lhes às três pancadas.» Ou seja, e para repetir a imagem do bilhar, diálogos que não se movem na direcção do alvo, mas correm para várias direc­ções e ângulos, antes de baterem na bola que se mete no buraco.
Muito perto do fim, outra gloriosa utilização das bandas sonoras. Kid morreu, na mais bela morte da história do cinema. «Broke his neck. Took off a few minutes ago», como diz Geoff, o homem que ele mais amou, o homem que mais o amou a ele. Depois, entra no bar. E volta­ -se a ouvir uma canção, aparentemente despropositada. Desta vez, é à guitarra e é o “Adios, Mariquita Linda”. Geoff sai, sozi­nho, para o gabinete dele, com porta para o bar. Volta o raccord com o relógio e Bonnie hesita entre ficar ou ir-se embora, porque Geoff nunca lhe disse que a amava, nunca lhe pediu para ela ficar. Apro­xima-se dela outro amigo de Kid, Sparks (Victor Kilian) que a con­vence a ir ter com Geoff O diálogo - muito breve - é todo sussur­rado. 
Há várias razões plausíveis para que o seja (respeito pela morte de Kid, pela canção que estão a tocar). Mas num filme onde o essen­cial ficou sempre por dizer e onde nunca ninguém contou histórias explicativas, esse estranhissimo sottovoce não tem só sentido musical ou psicológico. Porque é o único momento em que uma personagem, até aí secundarissima e silenciosíssima, responde a todas as perguntas de Bonnie, exactamente como ela quer que lhe respondam. «Se me dis­seres que devo ir ter com ele, eu vou.» «Então, eu digo.» E, no mesmo plano, sem corte, e sempre com o “Adios Mariquita” a ouvir-se, Bonnie atravessa o bar e entra no escritório de Geoff. Música e murmúrios comandam tudo.
Mas tudo é igualmente comandado pelos fósforos que Geoff nunca tem, ou só tem em dois momentos capitais. Ou pelo tema re­corrente da moeda. De cada vez que Geoff e Kid têm de decidir a qual deles cabe a missão mais difícil, Kid propõe o «cara ou coroas». E ganha sempre, ou seja, perde sempre, porque é ele sempre quem vai. Mas só no voo final (o voo da morte de Kid) Geoff descobre que a moeda está viciada e só tem caras. «Doublecrossing himself» E, no final, Geoff usa-a como Kid sempre a usara. Recusa-se, como sempre se recusou, a pedir a Bonnie que fique e propõe-lhe o cara ou coroas. Caras ela fica, coroas vai-se embora. Bonnie recusa o jogo. Quer palavras, não quer sortes. Geoff parte e dá-lhe a moeda como recordação. Desespero de Bonnie. Até que começa a reparar bem na moeda e, quando percebe que ela só tem caras, percebe tudo, como tudo, antes, Geoff percebera de Kid. Esse Kid que quer ficar sózinho ao morrer, sózinho para «his first solo». Esse Kid cuja morte fez Geoff chorar lágrimas de homem, as úni­cas lágrimas de homem de um filme de Hawks.
«A man can díe only once. We owe God a debt. If we pay ít today, we don't owe ít tomorrow.» A citação, é do Henry IV de Shakespeare e é feita em tradução espanhola, por um médico local. Aparentemente, a tradução não se justifica, como aparentemente não se aplica à situação concreta em que é dita e em que ninguém morre. Mas - diálogos às três tabelas - é a epígrafe do filme. Cada um dos personagens tem, em elipse, uma dívida, cada um tem uma avaria no motor por reparar. Todos a vão pagar. Ou porque reaprenderam a viver e a acreditar. Ou porque aprenderam que a morte é o único voo que fez sentido. Quem foi que falou da lei moral dentro de nós e do céu estrelado por cima de nós? Emmanuel Kant ou Howard Hawks?
João Bénard da Costa
CURIOSIDADES:

- "Only Angels Have Wings" foi um dos 12 filmes americanos seleccionados para aquele que seria o primeiro Festival de Cannes. Infelizmente rebentou a Guerra e o Festival seria adiado por 7 longos anos.

- O filme era para ter tido o título de "Pilot Number 4"

- Como Rita Hayworth tinha dificuldades em interpretar a cena em que se encontra bêbada, Hawks instruiu Grant no sentido de lhe deitar um balde de água em cima.

- A sequência da morte de Kid, no final do filme, foi copiada, palavra por palavra, da morte de um piloto que Hawks testemunhou na vida real.

- A frase «Calling Barranca» foi posteriormente usada em diversos filmes de desenhos animados

- "Only Angels Have Wings" teve duas nomeações para os Oscars, nas categorias de Cinematografia e Efeitos Especiais.


7 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

É um dos grandes filmes de aventura, Rato. Um dos meus preferidos. Mas não podia ser diferente. Juntar numa mesma equipe Hawks, Jean Arthur, Grant e Thomas Mitchell só tinha que dar certo.

O Falcão Maltês

Maxx disse...

Assistirei esse filme por conta de sua postagem, que por sinal ficou excelente. Agora que sou seguidor estarei sempre por aqui. Parabéns pelo blog. Grande abraço e bons filmes. Maxx - blog TeleCineBrasil.

Adecio Moreira Jr. disse...

Que blog lindo, heim. Parabéns. Posso linkar no Poses e Neuroses?

Rato disse...

Maxx e Adecio:
Fico feliz por se sentirem bem aqui, na Toca do Rato, obrigado!
E, Adecio, pode linkar à vontade, quando algo está na net deve ser de todos, mesmo!
Apareçam sempre!

Álvaro Martins disse...

The Lost Patrol é do Ford, não te terás enganado com o The Dawn Patrol?

Rato disse...

Tens toda a razão, Álvaro, "The Lost Patrol" é do Ford, não do Hawks. Mas o texto não é meu, é do Bénard da Costa, e limitei-me a reproduzi-lo.
Ah, e "The Dawn Patrol" foi realizado por Edmund Goulding. Quer um quer outro nunca vi, dái não me ter apercebido do erro. Mas tenho por princípio não alterar um escrito alheio, mesmo quando tal se justifica, como é o caso. Por isso fica assim, tal e qual.

Álvaro Martins disse...

"Mas tenho por princípio não alterar um escrito alheio, mesmo quando tal se justifica, como é o caso. Por isso fica assim, tal e qual." e fazes tu muito bem, eu sigo o mesmo princípio, mas confesso que não tinha reparado que o texto era do grande Bénard. Também não vi nenhum dos dois embora tenha aqui o do Ford e já por duas ou três vezes estive para lhe pegar. Mas não tardarei a lhe pegar :)