sábado, janeiro 15, 2011

SINGIN' IN THE RAIN (1952)

SERENATA À CHUVA




Um filme de STANLEY DONEN e GENE KELLY


Com Gene Kelly, Donald O'Connor, Debbie Reynolds, Jean Hagen, Millard Mitchell, Cyd Charisse


EUA / 103 min / COR / 4x3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 27/3/1952 (New York)
Estreia em Portugal a 18/12/1952 
(Lisboa, cinema S. Jorge)

Lina: "What's wrong with the way I talk? 
What's the big idea? Am I dumb or something?"

Se On the Town”, marca o começo de uma decisiva evolução do musical em que o enredo deixa de ser mero pretexto para apresentação de números (canções, bailados), mas existe como parte integrante e integradora deles, Singin' in lhe Rain” - porventura o mais fulgurante filme da história do musical - marca o apogeu desta concepção. A tal ponto que este foi o primeiro musical a adquirir a dimensão dos grandes clássicos do cinema, a figurar, quase invariavelmente, nas listas dos melhores filmes de sempre e a ganhar o estatuto do maior cult movie da história do género.
De novo se uniram nesta obra os autores de On the Town”: o produtor Arthur Freed, o coreógrafo, bailarino, actor e co-realizador Gene Kelly, Stanley Donen e os argumentistas Comden­ & Green. E a ideia genial - o ponto de partida - foi meramente esta: ressuscitar o nascimento do musical, género que surgiu evidentemente com o sonoro, revisitando a Hollywood desses tempos e dessa difícil transição. O resumo do filme cabe na ideia de transformar “The Dueling Cavalier” (o filme dentro do filme que reuniria de novo as famosas estrelas Lina Lamont e Don Lockwood) num musical, dobrando Lina Lamont e evitando, assim, a catástrofe que a sua voz implicaria. E assim se reunem, nesta obra ímpar, dois dos géneros maiores dos fifties: o musical e o film on films.
A ideia foi bastante trabalhada por Freed, Kelly e os argumentistas e tem na sua base alguns aspectos verídicos e até autobiográficos. Nos meados dos anos 20, Freed e Nado Herb Brown acompanhavam ao piano filmes mudos. Quando veio o sonoro, como tantos outros, ficaram sem emprego. Tiveram então a ideia de se propôr à Metro como autores de canções e as mais célebres que figuram neste filme são revivals de outras ouvidas no princípio do sonoro: “You Were Meant for Me” foi cantada no Broadway Melody of 1929” (um dos primeiros musicais da Metro), o “Singin' in the Rain” no Hollywood Revue”. Reviver essas canções era já, como todo o filme, reviver a passagem dos movies ao talkies.
Gene Kelly viria a dizer: «Tudo começou com uma paródia sobre uma estrela de cinema que queria ser uma estrela do sonoro e andámos todos, durante imenso tempo, a investigar nos estúdios, perguntando aos veteranos como é que se fazia naquele tempo. O script foi escrito com base em informações que arranjámos. E aconteceu até que a base do filme era bastante verdadeira, pois o mesmo aconteceu a uma estrela da MGM em 1928 - e só nos limitámos a exagerar um bocadinho».
Para a história dos elementos autobiográficos, vale a pena referir, também, que Debbie Reynolds começou no cinema a «dobrar» canções e que foi o sucesso duma dessas dobragens que lhe deu a fama. Talvez esses aspectos tão discretamente autobiográficos não sejam secundários para o entusiasmo que cada um pôs no filme e para o «milagre» que Singin' in lhe Rain” constituiu. Vejamos agora a sua portentosa construção.
No início da obra, nada nos instala no universo típico do musical. Revisitamos as grandes estreias de HolIywood nos twenties, com a multidão à espera dos «astros» e a jornalista a dar sensação. A primeira variação é dada por Gene KelIy no discurso do «always dignity» contrariado pelos flash­backs, mas ainda aí (e a não ser pelo ritmo imprimido por Gene KelIy e Donald O'Connor) podíamos estar numa comédia ou num filme cómico. Da mesma estética releva o encontro KelIy-Reynolds, ou Debbie a sair do bolo (nem falta a tradicional cena da “tarte à la creme” na cara de Jean Hagen).
Só quando KelIy começa a ficar um pouco triste, entra o primeiro número musical, o “Make 'em Laugh” de Donald O'Connor. Prosseguem as aventuras cómicas dum produtor aflito com a concorrência da Warner e dum actor despeitado e apaixonado. E subitamente esse actor (Gene KelIy) inventa num estúdio deserto um décor (estrelas, lua, nevoeiro, cores e uma escada) e a magia acontece, pela primeira vez, no “You're Meant For Me”, em que o film dance ou o film music tudo invade, como mais tarde sucederá no famosíssimo bailado que dá nome ao filme.
Desde logo, desde aí (como também na cena em que Debbie-Gene-Donald têm a ideia de transformar o cavaleiro romântico num cavaleiro dançante) a dança não é o entertainment mas o espaço e o tempo do amor, da alegria, da invenção e da criação. Sentimos que a dança tem que acontecer, não para variar um pouco, não por intermédio ou para intermédio, mas porque só nesse ritmo a força alada daquelas criaturas se pode exprimir.
Entretanto, muito mais coisas cómicas se passaram, como o famoso episódio do microfone e de Jean Hagen: Mas ninguém já está muito interessado nessa farsa. É muito mais importante dançar à chuva (sózinho, mas com toda a gente e até um polícia) ou cantar “Good Morning” quando substantivo e adjectivo adquirem a sua expressão suprema. E quando já estamos completamente embalados, no ritmo imparável daquela imensa alegria, Don expõe a Simpson o plano do filme e o filme nasce, como provavelmente filme algum nasceu. É o “Broadway Melody BalIet” a arrancar do pé e da perna de Cyd Charisse num fabuloso travelIing lateral que nos introduz a uma das mais geniais sequências oníricas da história do cinema.
Encontro da mitologia dos anos 20 (o gangster e a vamp, o cabelo cortado à Louise Brooks) com a mitologia dos anos 50 (a ruptura, a profundidade de campo, o espaço desmultiplicado, a sensualidade mais ofegante e mais afagante). Desde a dança canalha (o vestido verde, as meias pretas, a saia aberta) até aos véus brancos, com KelIy de joelhos em adoração, passando pelo cor-de-rosa - esses típicos cor-de-rosa do technicolor que já não são cor-de-rosa mas a bela palavra magenta. A partir desse momento tudo se pode precipitar até ao triunfo de Debbie Reynolds e à queda de Jean Hagen. Lina Lamont esqueceu, Kathy Selden é a nova vedeta, sempre com Don Lockwood, o homem capaz de passar dum registo ao outro, como o fabuloso bailarino que o interpretou.
O cartaz final recorda-nos que um novo tipo de filme nasceu, evocando mais uma vez o surto do alI talking. Mas desde a época evocada no filme (1927) faltavam 25 anos para que aparecesse o primeiro filme alI talking, alI singing, alI dancing. Esse filme chama-se Singin' in the Rain”. «Filme dum bailarino, filme da alegria», como em tempos escreveu Chabrol, é também o filme que contém dentro de si (os bailados de Cyd Charisse) toda a nostalgia por outra coisa bem mais funda que essa alegria, ou melhor dito donde essa alegria surge: a possibilidade do encontro mítico que já não se canta à chuva, mas nos tempos e espaços da inacessibilidade do sonho. Sonho para onde sempre tenderam os grandes musicais de HolIywood (os Berkeley dos anos 30, os Minnelli dos 40) e que aqui é evocado com a nostalgia de quem, sabendo-o possível, conhece igualmente a impossibilidade dessa possibilidade.
João Bénard da Costa

É a partir desta altura que uma crítica passa a ser uma carta de amor, transformando um filme como “Singin’ in the Rain” no objecto duma paixão, íntima parte do que será sempre a memória do Cinema que amamos. Olhos que porventura entraram críticos para uma sala de projecção saem fascinados; pernas que se calhar entraram pesadas saem possuídas da mais impossível leveza. E é sempre inevitável que o percurso analítico não passe dos proibidos domínios do coração.
O amor pelo cinema não se explica, pratica-se. E é com “Singin’ on the Rain” que a prática nos sai quase perfeita, sentindo-nos completamente desarmados face a uma confecção artificial cuja artificialidade nos custa às vezes muito ter presente. Não é a vida, não é a realidade. Nem a elas se pode aplicar directamente um filme como este. É sim um sonho, mas um sonho particular; é sim um desejo, mas um desejo aleatório; é sim uma nostalgia, mas mais precisamente uma saudade. O sonho, o desejo, a saudade. O Cinema. Como no primeiro frémito de luz que percorre sensivelmente a tela de projecção, estamos outra vez entre os espectadores de Lumière, assistindo à primeira experiência de luminosidade.
Contra a noite e a chuva fica-nos para sempre “Singin’ in the Rain”. Voamos nele e dele nos servimos para voar. E enquanto estamos lá no alto os sintomas mais-que-clássicos do grande filme musical tomam conta de nós. E são esses sintomas, contaminados de magia e de fascínio, que nos obrigam ao encantamento. É a nostalgia telúrica da banda sonora, é o erotismo do contraponto coreográfico, é o riso interior dos actores conscientes da sua própria fantasia e é, acima de tudo, o amor que nos transparece de cada face desse grande prisma do cinema musical que é “Singin’ in the Rain”.
CURIOSIDADES:

- O argumento foi escrito depois dos temas musicais, pelo que o enredo teve origem (e foi-se adaptando) nas letras das canções, que já existiam antes, com excepção de "Moses Supposes" e "Make 'em Laugh" que foram escritas de propósito para o filme. Quanto ao tema principal, "Singin' in the Rain", foi a sexta vez que foi usado num filme.  

- Na célebre sequência do tema "Singin' in the Rain" foi adicionado leite à agua para que a "chuva" fosse mais visível. Tal expediente teve como consequência o encolhimento do fato de Gene Kelly

- Apesar de ser uma cantora com provas dadas, não é a voz de Debbie Reynolds que se ouve no filme, mas sim a de Betty Noyes, que a dobrou em todas as canções. A interpretação de Debbie em "You Are My Lucky Star" aparece como extra na edição em DVD

- Gene Kelly chegou a insultar Debbie Reynolds por ela não ser capaz de dançar durante um número musical. Fred Astaire, que nesse dia se encontrava de visita ao estúdio, foi dar com ela a chorar junto ao piano e ajudou-a a interpretar o bailado. Aliás, também o actor Donald O'Connor se queixou do feitio tirânico de Kelly

- Debbie Reynolds tinha apenas 19 anos quando entrou no filme. Como vivia com os pais a certa distância do estúdio (tinha de apanhar três autocarros para lá chegar), dormia frequentemente no local de filmagens, as quais chegavam a prolongar-se por 19 horas diárias

- Cyd Charisse teve de aprender a fumar para interpretar a sequência do bailado com Kelly

- Em 2007 o American Film Institute classificou "Singin' in the Rain" em 5º lugar na lista dos Melhores Filmes de Sempre (1º lugar dos Musicais)

- O negativo original do filme foi destruído durante um incêndio

- "Singin' in the Rain" teve apenas duas nomeações para os Oscars: Banda-Sonora e Actriz Secundária (Jean Hagen). Donald O'Connor ganharia o Globo de Ouro para o melhor actor numa comédia ou musical


LOBBY CARDS:
Junto se anexa a respectiva banda-sonora, remasterizada e aumentada:

3 comentários:

Billy Rider disse...

Este filme é intemporal e consegue rejuvenescer-nos a cada vez a que ele assistimos. Por isso um remédio eficaz para quem quer preservar toda a alegria e inocência de viver. Se existem obras-primas (e muita gente anda para aí preocupada com isso), então esta é mesmo uma delas.

José Morais disse...

Adoro este filme. Mas não me consigo decidir entre ele, o "Americano em Paris" e "A Roda da Fortuna". Isto só para falar no período clássico do musical americano.

Rato disse...

E é preciso "decidires-te", José? Nestes casos o melhor mesmo é amá-los a todos, sem distinção. Acredita que só lucramos em não nos dividirmos nesses amores. Afinal o homem é um animal geneticamente polígamo. Ou não?