Um filme de CARLOS REYGADAS
Com Cornelio Wall, Maria Pankratz, Miriam Toews, Peter Wall, Jacobo Klassen
MÉXICO-FRANÇA / 145 min / 16X9 (2.35:1)
Estreia em França, a 22/5/2007
(Festival de Cannes)
Estreia no México a 12/10/2007
Carlos Reygadas é um produtor, realizador e argumentista mexicano nascido a 10 de Outubro de 1971, em Mexico City. Estreou-se em 2002 com “Japón”, obra desde logo distinguida no Festival de Cannes com uma menção especial (“Golden Camera”). Seguiu-se, em 2005. “Batalla en el Cielo”, nomeado também para esse mesmo Festival (“Palma de Ouro”). Ainda não conheço qualquer deles, mas tive agora o privilégio de assistir à sua terceira longa-metragem, este muito belo “Stellet Licht” de que vos quero falar em seguida. Prémio do Júri no Festival de Cannes de 2007 (ex aequo com “Persepolis”), “Stellet Licht” é uma obra de grande sensibilidade, transformada quase da noite para o dia em clássico absoluto.
É exactamente no escuro da noite que “Stellet Licht” (“Luz Silenciosa”) se inicia, com um fabuloso plano-sequência de cerca de cinco minutos (podem vê-lo no clip aí em baixo) encenando o nascer do sol. No final o processo será invertido, dando-nos em contraponto o crepúsculo e a dissolvência do pôr-do-sol numa nova noite. É entre estes dois polos que o filme se desenvolve, dando-nos muitas vezes a sensação de estarmos num qualquer Jardim do Éden, no meio de uma natureza majestosa, iluminada por uma luz divina que tudo mitifica à sua volta. Obviamente inspirado por “Ordet”, de Carl Dreyer, Reygadas faz-nos partilhar as dúvidas morais e existenciais de Johan, o patriarca de uma família rural de Menonitas (adeptos da religião homónima), cujo amor se encontra dividido entre a mulher, Esther, e a amante, Marianne, a dona de um restaurante. Uma intriga, portanto, do mais vulgar que existe no cinema de todos os dias. Só que “Stellet Licht” é tudo menos “cinema-de-todos-os-dias”, e tão pouco será um “cinema-de-todos-os-públicos”. A técnica usada por Reygadas (onde, apesar de tudo, se nota ainda algum academismo, sobretudo no uso e abuso dos zooms) remete-nos poeticamente para os universos fílmicos de grandes cineastas do passado. Para além do já citado Dreyer, “Stellet Licht” traz-nos de volta Bergman, Tarkovsky, Bresson, ou mesmo Malick e até Kubrick, na composição bela e minimalista dos quadros que lenta e sucessivamente vão desfilando diante dos nossos olhos, pouco a pouco seduzidos até serem completamente absorvidos por todo aquele branco final onde a morte e o conformismo já não têm lugar.
Transcreve-se de seguida um esclarecedor texto, da autoria de Álvaro Martins (blogue “Preto e Branco”), apaixonado por este filme e que foi quem em boa-hora me introduziu ao cinema de Carlos Reygadas: «A procura da fé e a da materialização do acto miraculoso da reincarnação no cinema não é novidade. Aí, nesse contexto, “Stellet Licht” é a mais pura das homenagens (ou referências) a ”Ordet” de Dreyer. Mas aqui Reygadas quer mostrar a fé na natureza, na beleza das luzes, do céu, da terra, das paisagens, da vida. A fé que Reygadas quer alcançar é a fé nos homens, na natureza, na humanidade. Por isso o sentimento de culpa, por isso o sacrifício tanto de Esther como no final o de Marianne.
Ao sentir-se dividido entre a paixão intensa com Marianne (e escolher Marianne significa o divórcio, significa desafiar as regras dos mennonites) e o amor sólido com Esther (a esposa e mãe dos filhos), Johan é um homem assolado pela dúvida e pela culpa. Mas ele sabe que essa dúvida tem de ser desfeita, sabe que tem de fazer uma escolha. Por isso aconselha-se com o amigo da oficina e depois com o pai. E ao falar com o amigo percebemos a dimensão da situação, percebemos a importância que Marianne tem para Johan. Mas Johan duvida, hesita. Marianne representa o novo amor (talvez o verdadeiro amor, talvez se tenha casado com a pessoa errada), mas Esther é a sua mulher (e o pai frisa-lho bem, lembra-lhe que o seu dever é com a mulher e os filhos, conta-lhe um episódio semelhante da sua vida, diz-lhe que também precisou de sentir, mas que é tudo fugaz, que a família é que importa).
E neste dilema em que a escolha se revela tão difícil Johan faz sofrer Esther. Mais do que a traição, o que magoa Esther é a dúvida de Johan, a importância que Marianne tem para ele, a possível cessação do amor de Johan por si. Da dúvida chegamos ao sofrimento e consequentemente ao sacrifício. Esther morre de enfarte debaixo duma tempestade encostada a uma árvore. Ela sofre, chora de desgosto (momentos antes, no carro, Johan dissera-lhe que tinha estado mais uma vez com Marianne, que era mais forte do que ele). E morre de dor, de mágoa. Mas morre para Johan poder viver com Marianne, para ele poder encontrar a paz, para lhe desfazer a dúvida. E com este sacrifício, com este acto altruísta, Esther renuncia à vida e entrega-se a Deus (pois se ele a ama foi porque Deus assim o quis).
Reygadas, além de espiritualizar toda aquela história de adultério, define todo o seu desenvolvimento (a dúvida, a escolha, os sacrifícios) numa transcendência divina sobre esse dilema de Johan. A vontade de Deus (Johan escolher Marianne) e a vontade humana (ficar com Esther). Por isso o filme começa com o nascer do sol e acaba com o pôr deste. Mas a vontade humana é Marianne quem a demonstra. Porque quando Marianne dá um beijo a Esther (ao corpo gélido e inerte que ali jaz no caixão) e a ressuscita está ela também a sacrificar-se, a renunciar à vontade divina e ao amor de Johan pela felicidade deste. E é quando Marianne (num plano brilhante de Reygadas), abraçada a Johan (depois deste lhe dizer em choro que dava tudo para estar como antes), tapa o sol com a palma da mão (lá está a renúncia à luz divina) que a vontade humana prevalece. Mas o que fica sobretudo daquele final é ausência de redenção por parte de Johan. Porque realmente tudo volta a ser como antes, porque não há redenção possível, porque o que Johan finalmente percebe com a morte de Esther é que ama as duas e que, apesar de toda a angústia com aquela indecisão de dualidades afectivas, a dor da perda é ainda mais insuportável. Porque a paz é impossível, a plenitude é irrealizável.
”Stellet Licht” é um filme muito simbólico. Reygadas parece querer explorar a intervenção divina e a condição humana. E para isso recorre ao melodrama. Todos os seus filmes são melodramas que anseiam transcender-se. Porque todos eles vivem da dúvida (a vida e a morte em "Japón", a redenção espiritual e a sexual em "Batalla en el Cielo" e a mulher e a amante aqui), da indecisão da escolha. "Stellet Licht" é um filme contemplativo, naturalista, extraordinariamente filmado. Tarkovsky é sim influência primária em Reygadas. Assim como Bresson, o seu minimalismo está lá, o nada de que Bénard falava sobre "Pickpocket" também, a utilização de actores não profissionais (porque quer mostrar um homem e não uma cara conhecida e as expressões que se conhecem) igualmente. Rossellini e Buñuel também se passeiam por ali. "Stellet Licht" é uma obra-prima absoluta, dos melhores filmes que vi na vida».
CURIOSIDADES:
- A linguagem falada no filme chama-se plautdietsch, um dialecto alemão falado apenas pelos adeptos da religião menonita
- Filme rodado no norte do México, com actores não profissionais, que concorreu à Academia de Hollywood para o melhor filme estrangeiro, não chegando contudo a ser nomeado
2 comentários:
Obrigado pela menção :) apressa-te a arranjar os outros dois. O Japón então é tão bom como este.
Nunca vi, mas se é um filme de homenagem ao "Ordet" é mesmo para não perder. Obrigado, Rato e Álvaro, pela sugestão
Enviar um comentário