Um filme de ALFRED HITCHCOCK
Com Tippi Hedren, Rod Taylor, Suzanne Pleshette, Jessica Tandy, Veronica Cartwright, Ethel Griffies
EUA / 119 min / COR /
16X9 (1.85:1)
Estreia nos EUA a 28/3/1963
(New York)
Estreia em França em Maio de 1963
(Festival de Cannes)
Estreia em Portugal a 20/11/1964
(Lisboa, cinemas Alvalade e São Luiz)
Mother in Diner: [to Melanie]
«Why are they doing this? Why are they doing this?
They said when you got here the whole thing started.
Who are you?
«Why are they doing this? Why are they doing this?
They said when you got here the whole thing started.
Who are you?
What are you? Where did you come from?
I think you're evil. EVIL!»
I think you're evil. EVIL!»
“The Birds” foi considerado por Alfred Hitchcock o filme mais complicado da sua carreira, aquele que lhe exigiu mais tempo de preparação e rodagem. Como confessou a Truffaut na célebre entrevista de 1966: «Costumo gabar-me de nunca olhar para o argumento enquanto rodo um filme. Sei o filme de cor, de uma ponta à outra. Sempre tive medo de improvisar no plateau, porque nessa altura, se há tempo para ter ideias, não há tempo para analisar a qualidade dessas ideias. Há ali muitos operários, electricistas e maquinistas, e eu sou muito escrupuloso com as despesas inúteis. Não posso, na verdade, imitar esses realizadores que fazem esperar uma equipa inteira enquanto se sentam para reflectir, nunca poderia fazer isso. Mas com “The Birds” foi diferente. Sentia-me muito agitado, o que é raro, pois habitualmente gracejo muito durante a rodagem. À noite, quando regressava a casa, para junto da minha mulher, continuava a sentir-me perturbado, emocionado. Qualquer coisa se passava, inteiramente nova para mim: comecei a estudar o guião durante a rodagem e encontrei-lhe fraquezas. Essa crise despertou em mim algo de novo do ponto de vista da criação.»
Quando Hitchcock adaptou a novela de Daphne du Maurier (1907-1989), sua amiga pessoal, e autora também de “Rebecca” (que Hitch transformou em filme em 1940), retirou-lhe quase exclusivamente a ideia original para o filme. Deixou de lado a meticulosidade e os pormenores anedóticos, substituindo-os por um clima potencialmente criativo. “The Birds” é o filme mais densamente psicológico de Hitchcock, aquele em que existe uma interacção inequívoca entre as sequências de suspense e as personalidades de cada um dos diversos personagens. Essa analogia nem sempre é perceptível numa primeira visão da obra, dai o cair-se frequentemente em apressados e desajustados juízos de valor, que não raramente remetem para uma subvalorização geral do filme. Mas atente-se em alguns exemplos:
A frivolidade das relações iniciais de Melanie (Tippi Hedren) e Mitch (Rod Taylor) – o filme arranca como se de uma screwball comedy se tratasse - só se começa a transformar em algo mais sério após Melanie ser atacada pela gaivota na baía, no caminho de retorno da casa dos Brenner. Lydia (Jessica Tandy), a mãe de Mitch, começa por exprimir uma atitude egoísta e obstrutiva em relação à atracção que desponta entre o filho e a mulher vinda de San Francisco. Devido aos ataques inexplicáveis dos pássaros sente o seu mundo particular – até aí povoado por uma segurança inquestionável, apesar da morte recente do marido – ser seriamente abalado nos seus alicerces, tornando-se, no final, uma aliada de Melanie (um afectuoso olhar entre as duas é um dos derradeiros planos do filme). O amor sublimado da professora, Annie Hayworth (Suzanne Pleshette) que se encontrava resignadamente adormecido, tem um novo alento, quer pela presença de uma nova mulher na vida do seu antigo amante quer pelos acontecimentos insólitos que irrompem na pacífica Bodega Bay. E o seu último gesto, antes de ser morta, é salvar a irmã do homem que ama.
Uma das coisas mais notáveis deste filme é a sua magistral gradação do clímax dramático, a implacável progressão dos ataques dos pássaros, que lentamente acabam por impor aos habitantes daquela pequena localidade a incrível realidade: o mundo das aves propõe-se destruir o mundo dos homens. “The Birds” é por isso também o filme de Hitchcock que mais se aproxima, sem contudo neles se consumir, dos universos do sobrenatural e da ficção científica. Até este filme, a principal obsessão de Hitch era a da razão (ou da falta dela) do Mal e dos problemas de culpa a ele associados. Em “The Birds” não existe essa culpa, o Mal existe no seu estado absoluto, está simplesmente ali, não podendo ser racionalizado ou subjectivado. É por isso que não há qualquer explicação para os ataques que vão ocorrendo ao longo do filme. Estamos confrontados com um Mal sem causa, sem culpados possíveis, até porque mesmo os agentes desse Mal – os pássaros – não podem por natureza ser culpabilizados.
Voltando à entrevista com Truffaut: «Não teria feito o filme se se tratasse de abutres ou de aves de rapina, o que me agradou foi o facto de se tratar de aves vulgares, de aves de todos os dias». Ou seja, a escolha dos mais inocentes e pacíficos dos animais é claramente intencional, porque a sua transformação em veículos do Mal assume por isso um carácter mais terrível e assustador. Quando a ornitóloga Mrs. Bundy (Ethel Griffies) nos fala da existência de mais de cem biliões de pássaros, quando Mitch diz que as suas investidas parecem obedecer a um plano organizado e sobretudo quando os vemos em acção, a nossa inquietação, como a dos protagonistas, é total, porque estamos perante a irracionalidade absoluta. A ameaça ao nosso quotidiano despreocupado vem de onde menos se espera, o que de certo modo nos coloca de sobreaviso em relação a tudo o que nos rodeia.
Tal como escreve Carlos Melo Ferreira no livro “O Cinema de Alfred Hitchcock”, «”The Birds” é o mistério insolúvel, estando para a obra de Hitchcock como “El Angel Exterminador” para a de Buñuel, “The Shangai Gesture” para a de Von Sternberg, “Le Testament du Dr. Cordelier” para a de Renoir. Sabe-se porque ocorre um tremor de terra. Sabe-se porque rebenta uma bomba atómica. Mas não se sabe porque é que, a partir daquele dia e durante algum tempo, os inofensivos pássaros de Bodega Bay atacam os habitantes da vila, que levam uma vida pacata. Nem se sabe quando (ou mesmo se) e porquê deixarão de atacar. E as relações que se podem estabelecer constituem explicações manifestamente insatisfatórias».
E continuando a citar CMF: «Os personagens podem atribuir-se culpas uns aos outros, Melanie pode ser culpada por ter ido a Bodega Bay, e pelas razões que aí a levaram, pode ser acusada do seu passado escandaloso, pode ser responsabilizada pelo sucedido por todas estas razões: o certo é que nada pode provar a culpa dos pretensos culpados, ninguém pode explicar de forma razoável, aceitável, porque minimamente científica, o mal que se abateu sobre os habitantes de Bodega Bay. Melanie pode funcionar aqui, com os seus lovebirds significando o desejo por Mitch, como a falsa culpada, em que há quem a queira transformar».
O filme destaca-se tecnicamente por uma grande austeridade expressiva; os momentos mais surpreendentes quase não são sublinhados por efeitos de câmara ou de montagem. A excepção será o ataque dos pássaros a Melanie, no sótão da casa de Mitch – aqui temos direito a uma variante, também ela excelente, da célebre sequência do chuveiro de “Psycho”, em que planos ultra-rápidos permitem ao espectador ver o invisível. Mas em tudo o mais a frugalidade dos meios utilizados é por demais evidente; até a música foi abolida de “The Birds”, tornando-se Bernard Herrmann apenas num consultor para o som. Um dos momentos mais admiráveis e célebres de “The Birds” é a do ataque dos pássaros à escola. Relembremos o que Hitchcock confidenciou a Truffaut sobre esta particular sequência:
«Analisemos essa cena no exterior da escola, quando Melanie Daniels está sentada e os corvos se juntam atrás dela. Melanie, inquieta, entra na escola para prevenir a professora. A câmara entra com ela e, pouco depois, a professora diz às crianças: «Agora vão saír, e quando eu lhes pedir que corram, vocês correm». Conduzo a cena até à porta e depois corto para passar aos corvos, todos juntos, e permaneço com eles, sem cortar e sem que nada se passe, durante trinta segundos.. Então o espectador pergunta a si próprio: « Mas que aconteceu às crianças, onde estão elas?» E só nessa altura se começa a ouvir o som de passos de crianças a correrem, todos os pássaros levantam voo e vemo-los passar por cima do telhado da escola antes de se abaterem sobre as crianças.
A velha técnica para obter suspense nesta cena consistiria em dividi-la mais: começar-se-ia por mostrar as crianças a saírem da aula, depois passar-se-ia aos corvos à espera, depois às crianças a descerem a escada, depois aos corvos a prepararem-se, depois às crianças a saírem da escola, depois aos pássaros a levantarem voo, depois às crianças a correrem e finalmente às crianças a serem atacadas. Mas hoje, para mim, esta maneira de proceder está fora de moda».
“The Birds” culmina numa sequência quase bíblica: sobre um poente de tons frios e esverdeados, entre a ameaçadora imobilidade das aves, Hitchcock introduz-nos num lúgubre apocalipse decorativo, que evoca um quadro de Marx Ernst. Todos os cuidados com que os fugitivos se dirigem para a viatura, tentando que o ruído dos seus passos não perturbe a inércia das aves vigilantes evidenciam o absurdo da situação, tanto mais que os pássaros não os atacam, como se esperassem uma ordem invisível para o fazer.
Aqui, neste derradeiro e inesquecível plano, já nem é sequer o medo que está em causa. A imagem que nos acorre ao espírito é a fuga silenciosa ante a presença do Mal, a procura da sobrevivência para além do horizonte. Hitchcock tinha pensado outro final, menos ambíguo, mas mais terrível: o carro dos protagonistas chegava a San Francisco e a ponte que dá acesso à cidade encontrava-se coberta, ao longo de toda a sua estrutura metálica, de milhares de pássaros. Ou seja, a ideia de que a ameaça não tinha ficado para trás e continuava bem real. No entanto, e por razões técnicas, não foi possível realizar-se a filmagem desse final.
Concluímos citando de novo CMF: «”The Birds” é o ponto sem regresso na obra dum artista único, que não impede posteriores obras-primas e que define melhor todo o trabalho do realizador, clarificando-o e dando-lhe, na sua ambiguidade, o seu sentido único como reflexão sobre a vida e a morte, o amor e o desejo, a sobrevivência e o terror. Sobre o Homem. E caracterizando essa obra com uma indelével marca estética: a da irreversibilidade da vida e da morte, mesmo quando aparentemente recuperáveis».
CURIOSIDADES:
- Hitchcock viu pela primeira vez Tippi Hedren num filme publicitário sobre uma bebida dietética. Nesse filme Tippi volta-se sedutoramente ao ouvir um assobio, situação recriada por Hitch (como uma private joke) logo no início do filme, imediatamente antes da sua clássica aparição, ao sair da loja de pássaros com dois cães terriers – companheiros inseparáveis do realizador duranta a rodagem do filme.
- O carro que Tippi Hedren conduz é um Aston Martin DB2/4 Coupé.
- A sequência do ataque dos pássaros no sótão da casa levou uma semana a ser rodada e originou o internamento de Tippi Hedren numa unidade hospitalar devido a um esgotamento da actriz.
- “The Birds” não acaba com o então habitual “The End” porque Hitchcock queria deixar no ar a ideia de que a ameaça dos pássaros não acabava com o final do filme.
- Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren, encontrava-se quase sempre presente durante a rodagem do filme. Um dia Hitchcock ofereceu-lhe uma boneca que era uma réplica perfeita da mãe, dentro de uma caixa de madeira, que a garota julgou tratar-se de um pequeno caixão.
- Segundo Hitchcock o filme contém 371 efeitos especiais, 32 dos quais foram usados na sequência final.
- A escola usada no filme é a Potter Schoolhouse, que esteve activa entre 1873 e 1961, ou seja, já se encontrava encerrada quando o filme foi rodado. Hoje o edifício é uma residência privada.
- Em todos os planos onde se vêm aglomerações de pássaros, grande parte deles não são verdadeiros. Veronica Cartwright lembra-se de ter questionado Hitchcock na altura se os espectadores não iriam notar a imobilidade desses bonecos. O velho mestre respondeu-lhe lapidarmente: «o Cinema é ilusão, minha querida. Basta verem alguns deles mexerem-se para acreditarem que todos os outros estão vivos também».
Recordemos o que François Truffaut escreveu sobre o filme em 1963:
«Apesar de ser o único cineasta cujos filmes reeditados vinte anos após a sua estreia dão tanto lucro quanto um filme novo, Hitchcock nunca ganhou um Óscar. Decerto, o seu último filme, "Os Pássaros", não é perfeito. Rod Taylor e Tippi Hedren acasalam de modo improvável, e a história sentimental - quase sempre a mesma: a caça ao marido - ressente-se disso, mas quanta injustiça na censura geral! O que me entristece é que nenhum crítico admire a ideia do filme: "Os pássaros atacam as pessoas". Estou convicto de que o cinema foi inventado para que este filme fosse rodado. Pássaros comuns, pardais, gaivotas e corvos vão atacar pessoas comuns: a população de uma aldeia costeira. Aqui está um sonho de artista e, para levá-lo a bom porto, é preciso muita arte e ser o maior técnico do mundo.
Alfred Hitchcock e o seu colaborador Evan Hunter ("Sementes de Violência") conservaram apenas a ideia da short story de Daphne du Maurier: pássaros à beira-mar que resolvem atacar os humanos, primeiro no campo, depois na cidade, à saída das escolas e até mesmo em casa. Nenhum filme de Hitchcock teve uma progressão tão exemplar, já que os pássaros, à medida do desenvolvimento da acção, tornam-se: a) cada vez mais negros; b) cada vez mais numerosos; c) cada vez mais maus. Quando atacam as pessoas, dirigem-se preferencialmente aos olhos. No fundo, irritados por serem capturados e engaiolados - senão mesmo comidos - pelas pessoas, tudo se passa como se um belo dia tivessem decidido inverter os papéis.
Hitchcock pensa que "Os Pássaros" é o seu filme mais importante, e esta é também, de certo modo, senão mesmo de modo certo, a minha opinião. Partindo de uma ideia plástica tão forte, Hitch compreendeu que era preciso cuidar da intriga, de maneira que esta fosse mais do que um pretexto para ligar entre si diversas cenas de coragem ou de suspense: criou uma personagem muito bem conseguida, a de uma rapariga de São Francisco, sofisticada e muito snobe, que passa por todas estas provas sangrentas, acabando por descobrir assim a simplicidade, a naturalidade.
Pode considerar-se que "Os Pássaros" é um filme de montagens, é certo, mas são montagens realistas. Na verdade, Hitchcock, cuja mestria aumenta de filme para filme, precisa incessantemente de novas dificuldades: torna-se o atleta completo do cinema. Na verdade, não se perdoa a Hitchcock que nos assuste de forma gratuita. Todavia, acredito que o medo seja uma emoção "nobre" e que pode ser "nobre" assustar. É "nobre" confessar que se teve medo e que se teve prazer nisso. Qualquer dia, só as crianças irão conservar essa nobreza.»
7 comentários:
Parabéns pelo excelente post.
É mesmo de quem sabe muito de cinema.
Não diria "saber", trata-se de algo em que somos sempre uns aprendizes (ou seguidores) de feiticeiro. Mas que é uma grande paixão (juntamente com a música) muito, muito antiga, disso não tenho qualquer dúvida.
Obrigado pelo comentário e obrigado também pelo teu excelente blog, onde me tenho deliciado quase diariamente
Magnífico post, amigo Rato, a fazer justiça a mais um grande filme do mestre Hitch. E também muito oportuno, dada a quantidade de asneiras que tenho lido por aí sobre este filme.
Nem de propósito, Rato, acabo de ler num outro blogue - "Cineroad" - que "The Birds" é, imagina... um filme "fraco". Reparei que deixaste por lá um comentário que denota também a tua surpresa pelo julgamento sumário dado a este filme. Mas folgo saber que partilhas a minha opinião sobre a importância fundamental desta bela obra do Hitchcock. Excelente crítica, e como sempre co-adjuvada por fotografias fabulosas. Estás de parabéns!
Obrigado, Billy e Nowhereman. Quanto ao post do Cineroad que por lá suscitou tanta polémica, julgo tratar-se efectivamente de um julgamento muito precipitado do Roberto Simões que provavelmente será re-avaliado no futuro.
Foi o primeiro filme que vi de Hitchcock e fiquei fascinado, convenceu-me logo a querer conhecer mais e mais.
Tem sequências sublimes como apontas no texto, aquela imagem dos corvos na escola é uma cena mítica do cinema.
Gostei também que tivesses colocado curiosidades.
Comecei a ler e estava a gostar muito mas comecei a aperceber-me de spoilers e tive de parar. Quando o vir, volto aqui para ler a tua crítica.
Frank and Hall's Stuff
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