À QUEIMA-ROUPA
Um filme de JOHN
BOORMAN
Com Lee Marvin, Angie Dickinson, John Vernon, Keenan Wynn, Carrol
O'Connor, Lloyd Bochner, Michael Strong, Sharon Acker, etc.
EUA / 92 m / COR / 16X9 (2.35:1)
Estreia nos EUA: 30/8/1967
Estreia em PORTUGAL: Lisboa (cinemas Condes e Roma) 18/5/1968
À primeira vista, tudo nos diz que se
trata de uma simples história de gangsters. A publicidade é quase isso
que sugere, a figura de Lee Marvin não a desmente. A história é tradicional (extraída de um romance de 3.a
ordem de Richard Stark) - Walker participa num assalto a convite do seu melhor
amigo, Mal Reese (John Vernon, na sua estreia no cinema). Um desentendimento de processos cria a ocasião: Walker é traído pelo
amigo, que o deixa quase morto, e pela mulher, que o abandona. Mas Walker resiste,
recusa a morte. E lentamente, reconstruíndo-se como rosto, reconstruíndo-se
como corpo, reajustando os fragmentos duma experiência interrompida, recompondo
a realidade desfeita, lentamente Walker regressa, lentamente prepara a
vingança. É essa peregrinação solitária, ou quase, que o filme nos descreve:
furiosa, obsessiva restituição das coisas à sua verdade justa. A traição
desequilibrara os eixos da realidade. Walker percorre o real (corredores, ruas,
cidades) para lhe atribuir o equilíbrio perdido. Lutando contra uma engrenagem
que o despreza e ignora, WaIker opõe-lhe o desespero da sua solidão. Mas
(sabemos nós) ao lutar contra a
engrenagem é a engrenagem que o move;
a sua vingança, livremente executada, teve afinal a necessidade de um mecanismo
de precisão. Novamente a realidade se desequilibra, novamente ela se estilhaça:
mas Walker descobriu no amor o eixo frágil mas imenso duma verdade suspensa.
Se quisermos fazer o elogio de "À Queima-Roupa" teremos de analisar os vários elementos que
contribuem para a sua qualidade. Em primeiro lugar, este filme tem um peso
específico, uma textura própria, que o torna denso e opaco. As imagens
nunca estão reduzidas à categoria de instrumentos para contar uma história, mas
funcionam como pedaços de uma realidade irredutível a qualquer esquematismo ou
significação. Cada sequência possui uma força íntima que nos esmaga pela sua energia e
riqueza transbordantes. Dos objectos aos rostos, dos gestos às palavras, tudo
tem a medida exacta da realidade. Mas esta realidade não é a realidade
imediata: é uma realidade construída, é o produto da complexa elaboração de mil factores que a
transformam em presença e enigma, em nudez e dissimulação. Para tal contribui
certamente um apuradíssimo sentido dos ambientes, a espantosa construção de um
espaço que nunca é indiferente, que é sempre, na sua asfixia, no seu desacerto
ou desvario, uma das personagens nucleares de toda a obra.
Acentuemos ainda os elementos de irrealidade que marcam a primeira
parte do filme. Boorman utiliza com mestria uma banda sonora extremamente trabalhada,
e o resultado é a desarticulação do
real, é a multiplicação do presente numa pluralidade de tempos. Recordando para
a vida, Walker não sabe distinguir o presente do passado, o actual da recordação.
Isso permite uma desagregação das coordenadas do espaço e do tempo. E uma vez
que não há em Walker a mais leve sombra de «vida interior», uma vez que toda a «psicologia» foi banida em benefício duma análise rigorosa
dos comportamentos, as recordações não aparecem com a auréola poetizante que
lhes é tradicional. A recordação e o presente coexistem, fundem-se,
sobrepõem-se numa violência quase insuportável.
Por outro lado, o que nos fascina são as várias obsessões que
cortam transversalmente o itinerário linear do filme. A sua insistência acaba
por produzir um clima ambíguo, mórbido, exaltante, sedutor, terrível na sua
intensidade. De uma boite enlouquecedora
a um corredor sem fim, de uma multidão que é preciso
atravessar às águas como obstáculo a transpor, do encontro serenamente desenhado
pelo vento ao grito selvagem da separação e da morte, em tudo este filme nos
perturba, e envolve, e enleia. Acrescentemos ainda que Boorman soube reduzir as
personagens às suas dimensões físicas, destituindo-as de qualquer dimensão
«psicológica». E é nessa redução que elas se humanizam, que elas se esquivam
aos modelos do drama tradicional e se nos impõem na sua ambiguidade inteiriçada
e convulsiva. Boorman não insufla suplementos de alma aos seus intérpretes; ensina-os a dominarem o corpo, a existirem como
corpos que existem num espaço.
Há ainda a violência. Mas essa violência é linguagem. Porque
Walker perde o sentido da realidade e só o recupera através da violência. É vê-lo entrar numa casa, de pistola em punho, animal ofegante de espanto,
frágil até na sua solidão e desamparo. É vê-lo depois, na cedência do amor (que é um
desvio que pode dar sentido a esse plano), na fadiga das cenas finais, no seu
olhar exausto. Walker utiliza a violência como a única linguagem de que dispõe
para reconstítuir o seu mundo. E se disséssemos também que "À Queima-Roupa"
é
um filme feito de ternura, com a presença obsessiva do mar, com a ondulação dos
gestos, com a alegria pressentida no traço balanceado da câmara lenta? Porque douce est la parole de l' eau (escreveu um dia Tzara, poeta).
Walker, um dos personagens mais cool da história do cinema, é Lee Marvin, compacto, maciço, esmagador, num desempenho talhado à sua medida. A seu lado, Angie
Dickinson, para além de todo o sex-appeal que sempre lhe foi reconhecido, revela-se uma espantosa actriz, especialmente em duas sequências (a
cena de amor simulado com Reese e a luta impotente com Walker). Quando os olhos
dela se alargam imperceptivelmente em ternura e serenidade, nós
sentimos que a sua beleza tem a rara qualidade de nos comover. Há ainda Sharon
Acker (a mulher de Walker), com um monólogo esplêndido, pela contenção com que
é dito, e pelos silêncios de Lee Marvin, que o entrecortam. É talvez um dos mais belos momentos do filme.
CURIOSIDADES:
- Primeiro filme rodado na ilha de Alcatraz,
após o encerramento da prisão em 1963.
- A mansão onde Walker se encontra com Brewster, situa-se em Hollywood Hills, e foi alugada de propósito para o filme. Foi nesta mesma casa que Os Beatles se hospedaram quando visitaram Los Angeles. O nome da rua inspirou uma canção dos Fab 4: "Blue Jay Way", composta por George Harrison em 1967.
- Este mesmo argumento, da autoria de Richard
Stark (pseudónimo de Donald E. Westlake), daria origem a outro filme em 1999:
"Payback (A Vingança)", dirigido por Brian Helgeland e com Mel Gibson no
protagonista principal.
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