Foram precisos 40 anos para que este célebre livro de Truffaut viesse a ser editado em Portugal. "Les Films De Ma Vie" reúne alguns dos muitos textos que o cineasta (falecido em 1984, com apenas 52 anos) escreveu ao longo da sua vida, nomeadamente enquanto crítico de cinema nos Cahiers du Cinéma. Esses textos exaltam, acima de tudo, a vida e o cinema, assim como os autores que estiveram sempre entre os dois, presos a um mundo que juntava a realidade e o seu reflexo, ou a vida projectada à escala maior dos nossos sentimentos e dos nossos segredos - a escala do ecrã.
COM QUE SONHAM OS CRÍTICOS?
Num dia de 1942, ardendo de impaciência por ver o filme de Marcel Carné Os Trovadores Malditos, que finalmente chegava ao meu bairro, no
Cinéma Pigalle, decidi faltar às aulas. O filme agradou-me muito e, na mesma
noite, a minha tia, que estudava violino no Conservatório, passou lá por casa
para me levar ao cinema; já tinha a escolha feita: Os Trovadores Malditos e, como estava fora de questão confessar a
minha gazeta da tarde, tive de revê-lo fingindo que estava a descobri-lo. Foi
exactamente nesse dia que percebi o quão fascinante pode ser entrar pouco a
pouco na intimidade de uma obra admirada, até ao ponto em que se consegue
atingir a ilusão de reviver a sua criação.
Um ano depois,
chegava Le Corbeau, de Clouzot,
que me preencheu mais ainda; devo tê-lo visto umas cinco ou seis vezes entre a
data da sua estreia (Maio de 1943)
e a Libertação, que assistiu
à sua proibição; mais tarde, quando foi novamente autorizado, tornei a vê-lo
várias vezes por ano, até lhe conhecer o diálogo de cor, um diálogo muito
adulto comparado com o dos outros filmes, com uma centena de palavras fortes
cujo sentido ia adivinhando progressivamente. Como toda a intriga de Le Corbeau girava em torno de uma epidemia de cartas
anónimas a denunciarem abortos, adultérios e diversas corrupções, o filme
fornecia uma ilustração bastante parecida com aquilo que eu via à minha volta,
nessa época de guerra e de pós-guerra, de colaboracionismo, de delação, de
mercado negro, de desenrascanço e cinismo.
Os meus primeiros
duzentos filmes foram vistos em estado de clandestinidade, ou por fazer gazeta
à escola, ou por entrar na sala sem pagar (pela saída de emergência ou pelas janelas
da casa de banho), ou ainda por aproveitar as saídas nocturnas dos meus pais,
com a necessidade de me encontrar na cama no seu regresso a casa. Era, pois,
com fortes dores de barriga que eu pagava este grande prazer, com a barriga num
nó, a cabeça amedrontada, invadido por um sentimento de culpabilidade que só
podia aumentar a emoção provocada pelo espectáculo.
Eu sentia uma grande necessidade de entrar nos filmes e conseguia-o aproximando-me cada vez mais do ecrã para me abstrair da sala; rejeitava os filmes de época, os filmes de guerra e os westerns porque tornavam a identificação mais difícil; por exclusão de partes, sobravam os filmes policiais e os de amor; ao contrário dos pequenos espectadores da minha idade, não me identificava com os heróis heróicos mas sim com as personagens deficientes e, de forma mais sistemática, com todas as que erravam. Compreender-se-á que a obra de Alfred Hitchcock, toda ela dedicada ao medo, me tenha seduzido desde o início, e depois a de Jean Renoir, voltada para a compreensão: «O que é terrível nesta terra é que toda a gente tem os seus motivos» (A Regra do Jogo, 1939). A porta estava aberta, eu estava pronto a receber as ideias e as imagens de Iean Vigo, Jean Cocteau, Sacha Guitry, Orson Welles, Marcel Pagnol, Lubitsch, Charlie Chaplin, evidentemente, todos aqueles que, sem serem imorais, «duvidam da moral dos outros» (Hiroxima, Meu Amor, 1959).
copyright 1975, 2007, Éditions Flammarion / copyright 2015 (Maio), Orfeu Negro
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