Um filme de ROMAN POLANSKI
Com Roman Polanski, Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Shelley Winters, Jo Van Fleet, Lila Kedrova, Claude Piéplu, Rufus
FRANÇA / 126 min / COR /
16X9 (1.66:1)
Estreia em FRANÇA em Maio de 1976 (Festival de Cannes)
Estreia em PORTUGAL em Novembro de 1976
(Lisboa, Cinema Mundial)
Trelkovsky: «If you cut off my head, what would I say...
Me and my head, or me and my body?
What right has my head to call itself me?»
“Le Locataire” encerra uma trilogia de Roman Polanski em que o terror psicológico encontra as suas raízes no espaço claustrofóbico de um apartamento. Tal como em “Repulsion” (1965) e em “Rosemary’s Baby” (1968), assiste-se aqui à lenta descida aos infernos de um personagem que se vai desligando da realidade entre quatro paredes. Quer seja em Londres, Nova Iorque ou Paris, o apartamento é para Polanski o berço ideal de todas as nevroses paranoicas. Baseado num romance de Roland Topor, a história adquire alguns contornos auto-biográficos atendendo a que Trelkovsky, o protagonista principal (incarnado pelo próprio Polanski, mas sem qualquer menção nos créditos) é um tímido polaco recentemente chegado a Paris, à procura de duas assoalhadas para viver.
“Le Locataire” é uma obra perfeita no aspecto formal e que consegue desenvolver dentro do espectador um sentimento de inquietação crescente até ao clímax final. Sem grandes dúvidas, estamos diante de um dos pontos mais altos da filmografia de Polanski - ou a temática não fosse uma vez mais o enclausuramento do personagem no seu trágico destino – que reúne todo o seu pensamento, as obsessões, os fantasmas, o pavor que o cinema deste cineasta deixa entrever, por entre insinuações e silêncios. O beco (designação de um seu filme de 1966) é na verdade o cenário por excelência de Polanski - o lugar sem saída para onde são lentamente empurrados os seus heróis amedrontados, tímidos e sensíveis.
Trelkovsky, empregado de escritório, consegue finalmente alugar o apartamento desejado, depois de saber que a antiga inquilina se suicidara, saltando da janela do seu quarto para o pátio das traseiras. O proprietário do imóvel, um certo senhor Zy (Melvyn Douglas), aceita alugar-lhe o apartamento mas com condições previamente definidas. Casa séria e respeitável, não são permitidas visitas femininas, não se toleram desacatos, crianças e animais domésticos é melhor não os ter, o silêncio é de ouro. O tímido Trelkovsky a tudo diz que sim, confessando tratar-se de uma pessoa pacata que a última coisa que pretende é ter conflitos com os vizinhos.
Pouco depois Trelkosky visita a suicidária no hospital, onde trava conhecimento com Stella (Isabelle Adjani), uma amiga da moribunda. Junto à cama, são ambos surpreendidos por um grito lancinante que Simone Choule (assim se chama a vítima) lança na sua direcção, sem qualquer razão aparente. Trelkovsky tenta reconfortar Stella e vão a um cinema local ver um filme de artes marciais com Bruce Lee (“Enter The Dragon”), durante o qual se estabelece uma ligação sexual entre os dois. No dia seguinte, ao telefonar para o hospital, Trelkosky é informado da morte de Simone.
Aos poucos o nosso inquilino vai-se começando a familiarizar com as redondezas da nova residência. No café da frente dão-lhe conta dos hábitos de Simone e servem-lhe o leite com chocolate que ela bebia todas as manhãs naquele mesmo local, naquela mesma mesa. E quando Trelkovsky pede os seus cigarros preferidos (Gauloises) não os há, vendem-lhe Malboro, a marca que Simone fumava. A história do “Inquilino” de Polanski afasta-se do tradicional filme de terror (em que a morte é sempre o medo principal), confundindo-se antes com a história da perda progressiva de uma identidade (com a loucura no horizonte), uma transformação dramática que Franz Kafka já descrevera em “A Metamorfose”, obra que terá influenciado seguramente quer a imaginação de Roland Topor, ao escrever “Le Locataire Chimerique”, quer a mestria de Polanski ao dar-lhe vida no écran.
Acatando primeiramente as condições impostas para o apartamento, depois os cigarros e o leite com chocolate que lhe servem contra a sua vontade, e de um modo geral todas as convenções e regras estabelecidas à sua volta, Trelkovsky vai lentamente aceitando o seu destino, um destino a que o ambiente irrespirável circundante condena os mais fracos como ele. É o cerco que se aperta (como as mãos que estrangulam), a ameaça que se agiganta, os rostos que se reproduzem, a animosidade que progride, a agressão que se pressente por detrás de cada olhar desconhecido e já inimigo. Tentando libertar-se de todas as pressões, Trelkovsky vai-se isolando cada vez mais, refugiando-se por detrás do rosto, da silhueta, dos maneirismos de quem o precedeu naquele espaço fechado – e sofrendo as mesmas ameaças, envolvendo-se no mesmo pesadelo quotidiano, caminhando inexoravelmente para um fim idêntico.
“Le Locataire” corporiza essas ameaças em nós, espectadores, lembrando-nos das nossas próprias angústias ao personalizar um estado de espírito colectivo que todos sentimos, uma vez por outra, na agressividade latente que nos circunda nas nossas vidas de todos os dias. Razão de ser de grande parte das esquizofrenias de graus variados que a mesquinhês engendra no seio de uma civilização altamente egoísta e competitiva, onde o homem vacila na procura de um lugar e do horizonte claro de um destino a cumprir em plenitude.
Retratista admirável desses temores secretos que atormentam o cidadão normal, Polanski revela-se simultaneamente um cineasta de um realismo de décors e de figuras inultrapassável e um autor particularmente atento à realidade que se esconde para lá das aparências. O fantástico que se respira numa obra como “Le Locataire” é um fantástico que parte de dados absolutamente concretos. O segredo de Polanski é a forma como os manipula, como os interliga uns aos outros, como, em meia dúzia de planos, instala o horror e sabiamente o prolonga até à exaustão, à loucura, ao suicídio. Um suicídio que mimeticamente se imita, um suicídio que se reedita, que se reforça, que encontra forças para recomeçar tudo de novo.
Na adaptação do romance de Topor, Polanski contou com a preciosa colaboração de um seu auxiliar de sempre, Gérard Brach (falecido em 2006, com 79 anos). Ambos reconstruiram o pesadelo da história com a voluptuosidade mórbida de um fabulista requintado. Na cinematografia um mestre, Sven Nykvist (também falecido em 2006, com 83 anos), que neste filme usou pela primeira vez uma câmara dirigida à distância (a Louma IV), que permite filmar em espaços muito reduzidos. Philippe Sarde assinou a partitura musical (além de protagonizar um pequeno cameo – é o homem que se senta atrás de Trelkovsky e Stella no cinema) inovando também através da utilização de uma harmónica de vidro (instrumento de difícil execução e para o qual Mozart compôs algumas peças no seu tempo). Enfim, e não falando já no naipe de excelentes actores que povoam o filme, poder-se-á dizer que Polanski soube rodear-se de muito boas companhias para o seu “Inquilino”. O resultado é brilhante.
Com “Le Locataire” Polanski evita qualquer efeito espectacular, que aliás não se coadunaria com o aspecto kafkiano da obra. Não existem monstros, algozes ou rios de sangue, todos os clichés do género de terror se encontram ausentes. Mas em contrapartida (ou por causa disso mesmo), o cineasta dá-nos um grande filme, provavelmente um dos seus melhores de sempre (pelo menos o mais assustador), servindo-se de pequenos detalhes (os planos da casa de banho tornaram-se numa imagem de marca do filme) num ambiente onde habita o terror mais íntimo e surrealista. “Le Locataire”, ao longo dos seus anos de existência, nunca deixou de me causar o mais genuíno dos prazeres cinéfilos, independentemente das muitas vezes a que a ele já assisti. Incluindo aquele último plano de gelar o sangue, responsável por tantos pesadelos, mesmo entre os menos sugestionáveis dos espectadores.
LOBBY CARDS:
NOTA: Vale a pena dar uma olhada no texto que o Sérgio Vaz escreveu sobre este filme no seu blogue, "50 Anos de Filmes"
3 comentários:
Tudo o que você postou aqui foi formidável: Texto, imagens e vídeo... Como impressionam.
Um dos filmes mais perturbantes que vi em toda a minha vida - Polanski no seu melhor!
Já não se fazem filmes assim. Nem o Polanski.
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