domingo, agosto 24, 2025

FAR FROM THE MADDING CROWD (1967)

LONGE DA MULTIDÃO
Um filme de JOHN SCHLESINGER

 

Com Julie Christie, Alan Bates, Peter Finch, Terence Stamp, Fiona Walker, Prunella Ransome, Alison Leggatt, Paul Dawkins, etc.

 

UK / 168 min / COR / 16X9 (2.35:1)

 

Estreia em INGLATERRA (Londres) a 17/10/1967
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 29/3/1968 (cinemas Condes e Roma)



Gabriel Oak: «At home by the fire, whenever I look up, there you will be.
And whenever you look up, there I shall be.»


Após consultar as notas do meu amigo Sérgio Vaz, vou começar por recuar no tempo e situar a história de “Longe da Multidão”, o título com que o filme foi exibido em Portugal. Bathsheba Everdene – a protagonista do romance que Thomas Hardy começou a escrever em 1873 e foi sendo publicado em capítulos, como uma novela e anonimamente, na revista Cornhill Magazine em 1874 – é uma personagem absolutamente fascinante. É tão absolutamente fascinante que chegou ao cinema pela primeira vez em 1915, quando o autor estava vivo, passando bem e escrevendo poesia. (Thomas Hardy morreu em 1928, aos 88 anos.) Esta primeira versão para o cinema de “Far From the Madding Crowd”, de 1915, foi dirigida por Laurence Trimble, que também escreveu o respectivo argumento. Florence Turner foi a actriz que interpretou a primeira Bathseba do cinema.



Cinquenta e dois anos depois, na plenitude da década de sessenta, foi-nos apresentada a segunda Bathseba, que veio na pele de uma das actrizes mais fascinantes da História, por quem as gerações nascidas aí digamos entre 1940 e 1955 se apaixonaram – Julie Christie. A mulher sobre quem François Truffaut escreveu: «Julie é um coquetel de imperfeições fascinantes: um rosto bem animal, de loba, sobre um corpo de menina. É preciso acrescentar a sua voz, um pouco em contradição com o físico. Como se ela tivesse bebido 1.800 uísques, o que não é verdade. Não fuma, não bebe, mas rói as unhas. Seu físico é feito de contradições.»



Foi uma produção totalmente britânica; o director, John Schlesinger, já havia dirigido Julie em “Darling” (1965), e os outros três actores principais davam pelo nome de Alan Bates, Terence Stamp e Peter Finch. Ou seja, um elenco de luxo! Bathsheba Everdene não era uma dondoca, nem uma casadoira, nem passava a vida à espera de algum homem ou em função de algum homem. Era uma mulher forte, de desejos poderosos, que se orgulhava de ser independente. Uma mulher trabalhadora, capaz de meter a mão na massa e ao mesmo tempo administrar o trabalho de várias dezenas de pessoas. Uma mulher que atraiu as atenções e o amor não de um ou dois, mas de três homens.

Isso tudo tendo sido criado em 1873, em plena Era Victoriana, um tempo de muita moralidade rígida e muita censura a quem se desviava das regras vigentes. E criada por um homem que tinha então apenas 33 anos, e portanto não tinha sequer tido muito tempo para conhecer bem as mulheres (e será que algum homem se pode gabar de o ter conseguido ao longo dos séculos?). Thomas Hardy só viria a casar-se em 1874, o ano em que “Far From the Madding Crowd” apareceu em forma de folhetim. A moça, Emma Lavinia Gifford, era cunhada do reitor de uma escola de Cornwall, onde Hardy foi trabalhar como restaurador – filho de um construtor civil, tornou-se um requisitado profissional nessa arte, a mesma do personagem central de seu romance maior, “Judas, o Obscuro”. Esse grande escritor é uma das muitas provas de que a vida é mesmo cheia de surpresas. Seria extremamente difícil imaginar que um sujeito da classe média de Dorset, região do extremo Sul da Inglaterra, rural, sem uma cidade importante ou sequer média, pudesse vir a criar uma personagem que parece saída da imaginação de uma feminista nova-iorquina pós anos 1960.



“Far From the Madding Crowd” é um filme extraordinário que não só faz jus ao romance de Thomas Hardy, como também ostenta, como já se disse, um elenco soberbo. A personagem-título, Bathsheba Everdene (Julie Christie), em particular, evita cair no sentimentalismo, enquanto explora magnificamente as capacidades do seu talento como actriz. O papel varia de dominadora a insegura, de arrependida a triunfante. De mulher doce a grande dama de salão. Há também uma figura trágica: Fanny Robin (a estreante Prunella Ransome), que contribui para a profundidade do enredo com uma actuação impressionante: é engravidada pelo sargento Troy (Terence Stamp), e de seguida abandonada. Mais tarde regressa, mas para morrer, juntamente com o filho ainda dentro do seu ventre.

À medida que Bathsheba se torna adulta, três candidatos a cercam: o pastor Gabriel Oak (Alan Bates), que é o primeiro a tentar a sua sorte, logo no início do filme. Mas a sua proposta é rejeitada, Bathsheba não o ama. Ainda por cima perde todo o seu rebanho numa noite (que se despenha do alto de uma falésia, guiado por um dos cães de guarda que provavelmente terá enlouquecido para actuar desse modo) e é obrigado a partir em busca de emprego e melhores dias. Bathsheba, entretanto, herda uma propriedade de um tio e é lá que Gabriel encontra trabalho. Depois, há o Sr. Boldwood (Peter Finch), um vizinho rico e mais velho, uma figura patética com fama de não dar grande importância às questões sentimentais, mas que se apaixona perdidamente pela sua nova vizinha. De negação em negação, em adiantamentos sucessivos, Bathsheba vai recusando também as suas propostas de casamento. E por fim temos o sargento Troy (Terence Stamp), mais novo do que os seus rivais e que é extremamente popular junto ao sexo oposto. Como quase sempre acontece na vida real é tal fama que ajuda a compor o ramalhete, juntamente com uma certa áurea de canalha e cabotino. Bathsheba apaixona-se finalmente e o casamento vem de facto a acontecer. A favor de Troy pode-se referir a sua paixão por Fanny, mesmo depois de morta. A famosa cena junto ao caixão é bem paradigmática, quando Troy profere aquela terrível declaração a Bathsheba: «This woman, even dead, is more to me dear than you ever were... or are... or could be.»



Não vou contar tudo o que se segue, mas posso adiantar que a batalha com as forças da natureza naturalmente desempenha um papel, mas isso não é um fim em si mesmo: um incêndio, uma tempestade e uma doença num rebanho de ovelhas dão mais ênfase à história, criando no espectador a expectativa de um desenlace mais apropriado e, porque não, um pouco mais feliz. Nunca tendo lido o romance de Thomas Hardy, é de admitir que o mesmo seja mais pormenorizado do que o filme, e que contenha mesmo factos que aqui não são referidos. Mas é o eterno risco que corremos quando um filme é baseado numa obra literária de grandes dimensões e não temos a possibilidade de comparação. Mesmo assim, “Longe da Multidão” é um filme de grande desenvoltura (são quase três horas de projecção), muito agradável de se ver, mesmo passado mais de meio século e no mínimo justifica-se pelo retrato que nos dá do século XIX inglês. Resta ainda falar de uma cinematografia de cortar o fôlego (da autoria do futuro realizador Nicolas Roeg, que se estrearia três anos depois com “Perfomance”), por onde se passeiam as grandes emoções humanas.


CURIOSIDADES:

- Rodado em Dorset e Wiltshire, o filme ostenta uma autenticidade de época e personagens tão surpreendente que levou o designer de produção Richard MacDonald a comentar: «fazer este filme pode ter sido uma das últimas chances de filmar a Inglaterra rural como ela era em meados do século XIX». Boa parte do crédito vai para os 723 fazendeiros vizinhos e suas famílias, que foram recrutados para as cenas de multidão e pequenos papéis.

- Na versão que correu na altura da estreia em Inglaterra, foi abolida a cena da luta de galos por causa da lei inglesa que proibia mostrar cenas de crueldade com animais. Com cerca de 12 segundos, essa cena foi acrescentada quando o filme foi editado em DVD, passando, curiosamente, a durar cerca do dobro.

- Este foi o primeiro filme de John Schlesinger após o grande sucesso "Darling", de 1965. Reuniu-se com o produtor Joseph Janni, o argumentista Frederic Raphael e a actriz principal Julie Christie para porem de pé esta adaptação do livro. Raphael, um ávido apreciador dos escritos de Thomas Hardy, pode ter sido fundamental, afirmando posteriormente que, em vez de ser, como "Darling", um filme sobre "pessoas bonitas", seria "um filme sobre pessoas que realmente eram bonitas". O sucesso anterior garantiu à equipa liberdade de ação e também um grande orçamento, que Schlesinger estimou numa entrevista em cerca de 2,750 milhões de dollars. No entanto, o filme provou ser um grande fracasso de bilheteria, e Schlesinger raramente o elogiou, embora tenha gradualmente conquistado uma considerável reputação crítica.



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