quarta-feira, setembro 16, 2015

BUÑUEL POR BUÑUEL

“A Morte Cansada”, de Fritz Lang, foi para mim uma revelação. Quis fazer cinema e até 1927 ou 1928 interessei-me muito pelo meio. Em Madrid, apresentei uma sessão de cinema de vanguarda francês (que na altura não chegava a Espanha) e tive um êxito enorme. No dia seguinte fui chamado por Ortega y Gasset, que me disse: «Se eu fosse jovem, dedicava-me ao cinema.»
Quase todos os meus filmes têm a frustração como tema. Burgueses que não podem saír de uma casa, gente que quer jantar e é sempre impedida, um tipo que deseja assassinar mas cujos crimes falham… É a distância entre o desejo e a realidade. Tentar e fracassar. Interessa-me sempre ver como as circunstâncias vão fazer mudar as personagens. É como metê-las numa misturadora. Há ocasiões em que se pode comprovar que gente muito inteligente e civilizada, perante uma situação de perigo comum, torna-se brutal, animaliza-se. Alguns melhoram com a experiência, outros pioram. Desconfio da razão e da cultura. No nosso pensamento há imagens que aparecem repentinamente, sem que meditemos nelas. Em todos os meus filmes, até nos mais convencionais, há uma tendência para o irracional, para uma conduta que não se pode explicar logicamente.
Não faço cinema de ideias. Tenho, à partida, ideias a que sou fiel, e posso dizer que muitas são as mesmas que tinha aos 28 anos, apesar de terem gradações diferentes. Eu exponho, não imponho essas ideias. E mais que ideias, são imagens, sentimentos. Gosto do que Pilatos disse a Jesus: «O que é a verdade?» Nisso entendo mais Pilatos que Jesus. Simpatizo com os que se esforçam em buscar a verdade; desagradam-me os que falam como se a tivessem encontrado
Gala teve uma influência muito negativa em Dali. Quando ma apresentou, reconheço que não tive boa impressão dela, mas ele estava fascinado. Dali é muito assexuado, quase andrógino, como os anjos. E por causa de Gala acabou por se zangar com muita gente. No seu livro “A Vida Secreta de Dali”, acusava-me de sacrílego e radical. Uma vez, fiz-lhe ver as complicações profissionais que essas palavras me estavam a provocar. Contestou que: «Escrevi um livro para subir a um pedestal, não para te realçar.» Continuámos a falar um bocado e acabei por me ir embora sem lhe ir à cara. Acabou ali a nossa amizade, de forma definitiva. Fernando Cesarman, o psicanalista, disse que sou um misógino, que nos meus filmes a mulher fica sempre de rastos. Não sei, acho que não sou misógino. Talvez entenda pouco as mulheres. Também é verdade que me encontro muito mais à vontade entre homens do que entre mulheres.
A ambiguidade está sempre a pairar por aí. Nos meus filmes, o meu objectivo não é pôr coisas que tanto podem interpretar a preto como a branco. Seria fazer batota. O que sei é que qualquer homem em determinadas situações tem impulsos contraditórios. Eu deixo a interpretação ao espectador. Quanto à minha, talvez tivesse de me psicanalisar para saber onde estão os detalhes que me atraíram e comoveram. O mal é que, segundo um psicanalista, eu sou não-psicanalisável. Há um elemento de mistério, de dúvida, de ambiguidade. Sou sempre ambíguo. Identifico-me com a ambiguidade, porque rompe com as ideias feitas, imutáveis. Racionalmente não acredito em milagres, mas posso fingir que acredito porque me interesso pelo que vem a seguir. Além disso, estou a trabalhar no cinema, que é uma máquina de fabricar milagres.
Não me preocupo com as minhas obsessões. Porque cresce a erva no jardim? Porque está adubada para isso. Posso ter obsessão pelos pés ou pelos insectos, mas suponho que não me vão meter na cadeia por isso. Na realidade, os pés e os sapatos, de homem ou de mulher, deixam-me indiferente. Atrai-me o fetichismo do pé como elemento pitoresco e de humor. A perversão sexual repugna-me, mas pode atrair-me intelectualmente. Há quem diga: «Aqui está um salto alto que simboliza o pénis, segundo este ou aquele parágrafo de Freud.» É absurdo. Esta psicologia fácil chega a ser risível. Freud abriu uma janela maravilhosa para o interior do homem, mas o freudismo converteu-se numa igreja com resposta para tudo.
Entre os meus filmes preferidos figuram o filme inglês “Dead of the Night” (“A Dança da Morte”), delicioso conjunto de várias histórias de terror, e “White Shadows in the South Seas” (“Sombras Brancas nos Mares do Sul”), que me pareceu muito superior a “Tabu” de Murnau. Adorei “Portrait of Jennie” (“O Retrato de Jennie”) com Jennifer Jones, uma obra desconhecida, misteriosa e poética. Declarei nalgum sítio o meu amor por esse filme e Selznick escreveu-me a agradecer. Detestei “Roma Città Apperta” (“Roma Cidade Aberta”) de Rosselini. Achei que o contraste fácil entre o padre torturado e, na sala contígua, o oficial alemão bebendo champanhe com uma mulher no colo era um procedimento repugnante. Gostei de “The Treasure of the Sierra Madre” (“O Tesouro da Serra Madre”) de John Huston, que foi filmado muito perto de San José Purúa. Huston é um grande realizador e uma pessoa muito afável. Foi em grande parte graças a ele que “Nazarin” foi apresentado em Cannes.
Gosto de “Paths of Glory” (“Horizontes de Glória”) de Kubrick, “Roma” de Fellini, “O Couraçado Potemkine” de Eisenstein, “La Grande Bouffe” (“A Grande Farra”) de Marco Ferreri, monumento hedonístico, grande tragédia da carne, “Goupi Mains Rouges” de Jacques Becker e “Jeux Interdits” (“Brincadeiras Proibidas”) de René Clément. Gostei muito dos primeiros filmes de Fritz Lang, Buster Keaton,  e dos Marx Brothers. Gosto muito dos filmes de Renoir até à Guerra, e de “Persona” (“A Máscara”) de Bergman. De Fellini, gosto também de “La Strada” (“A Estrada”), “Le Notti di Cabiria” (“As Noites de Cabíria”), “La Dolce Vita” (“A Doce Vida”). Nunca vi “I Vitelloni” (“Os Inúteis”) e tenho pena. Em contrapartida, em “Casanova” saí da sala muito antes do fim. De Vittorio de Sica gostei muito de “Sciuscà”, “Umberto D” e “Ladri di Biciclette” (“Ladrões de Bicicleta”), onde ele conseguiu transformar uma ferramenta de trabalho numa vedeta. Foi um homem que conheci e de quem me sentia muito próximo.
Gostei muito dos filmes de Eric von Stroheim e de Sternberg. Na altura, achei “Underworld” (“Vidas Tenebrosas”) soberbo. Detestei “From Here to Eternity” (“Até à Eternidade”), um melodrama militarista e nacionalista que infelizmente teve muito sucesso. Gosto muito de Wajda e dos filmes dele. Nunca o conheci, mas há muito tempo, no festival de Cannes, ele declarou publicamente que os meus primeiros filmes lhe deram vontade de fazer cinema. Lembra-me a admiração que eu próprio sentia pelos primeiros filmes de Fritz Lang e que determinou o rumo que dei à minha vida. Acho comovente esta continuidade secreta que há entre os filmes, entre os países. (…) Há quatro anos que não vou ao cinema por causa da minha vista, da minha surdez, do meu horror ao trânsito, às multidões. Nunca vejo televisão. Às vezes, a partir das cinco recebo alguns amigos, converso. Janto às sete com a minha mulher e deito-me muito cedo.
Fui católico, mas perdi a fé aos 17 anos. Perdi-a antes até de ler Darwin. A minha dúvida começou pelas ideias sobre o Inferno e a justiça de Deus. Mas não quer dizer que uma cerimónia em honra da Virgem, com as noviças nos seus hábitos brancos e o seu aspecto de pureza, não me possa comover profundamente. Como posso negar que estou marcado culturalmente, e espiritualmente, pela religião católica? (…) A conclusão a que chego para meu uso próprio é muito simples: acreditar e não acreditar são a mesma coisa. Se me provassem neste instante a luminosa existência de Deus, o meu comportamento não se alteraria em absolutamente nada. Não posso acreditar que Deus me vigia constantemente, que se encarrega da minha saúde, dos meus desejos, dos meus erros. Que sou eu para ele? Nada, a sombra de uma lama. A minha passagem é tão rápida que não deixa qualquer marca. Sou um pobre mortal, não conto nem no espaço nem no tempo. Deus não trata de nós. Se existe, é como não existisse. Em tempos resumi este raciocínio na seguinte fórmula: «Sou ateu, graças a Deus.» Uma fórmula contraditória apenas em aparência.
Acredito mais no indivíduo que na sociedade. Nesta época científica e tecnológica, o homem está moralmente como na idade das cavernas. Já não acredito no progresso social. Houve uma época em que as minhas simpatias iam na direcção do movimento colectivo, mas agora sou um céptico bem intencionado. Posso pensar que o comunismo continua a ser o mais firme pilar da revolução mundial, apesar de, na verdade, eu já estar fora dessa luta. Procuro simplesmente não atraiçoar as minhas convicções de juventude, fazer-lhes o menor dano possível. E tento que os meus filmes sejam moralmente honrados.
Para mim, a fornicação tem algo de terrível. A cópula, considerada objectivamente, parece-me ao mesmo tempo risível e trágica. É o mais parecido com a morte: os olhos em branco, os espasmos, a baba. E a fornicação é diabólica: vejo sempre nela o Diabo. (…) Uma mulher com uma chemise negra, meias com ligas e sapatos de salto alto, é mais erótica que uma mulher nua. O nu total é geralmente puro, não é erótico. Não sou adverso ao erotismo, mas sim à pornografia, que é a fisiologia do erotismo. E sou contra a pornografia porque acredito no amor.
A liberdade é um fantasma. Pensei nisto seriamente e acredito nisso desde sempre. É um fantasma de névoa. O homem persegue-o, acha que o agarrou, e só lhe fica um pouco de névoa nas mãos. Para mim, a liberdade sempre se expressou nesta imagem. (…) Sade só cometia os seus crimes na imaginação, como forma de se libertar do desejo criminal. A imaginação pode permitir-se todas as liberdades. Outra coisa é a realização do acto. A imaginação é livre; o homem não. Uma coisa é a imaginação e outra a vida. Em termos de imaginação, ninguém tem nada a ensinar-me, porque sei tudo, espero tudo. Com a vida é diferente. Na realidade nunca fui um homem de acção, mas na imaginação, isso sou. Ao mesmo tempo que cumprimento uma pessoa, na realidade posso ter a fantasia de matá-la. A imaginação é o único terreno em que o homem é livre. A realidade, sem a imaginação, é metade da realidade.
Detesto a proliferação da informação. A leitura de um jornal é a actividade mais angustiante do mundo. Se fosse ditador, limitaria a imprensa a um único jornal e a uma única revista, ambos estritamente censurados. Esta censura seria apenas aplicável à informação, a opinião permaneceria livre. A informação-espectáculo é uma vergonha. Os títulos enormes – no México batem recordes – e as manchetes sensacionalistas dão-me vontade de vomitar. Todas aquelas exclamações acerca da miséria alheia para vender um pouco mais de papel!
Com a idade que tenho, deixo os outros falar. A minha imaginação ainda aqui está , na sua inatacável inocência sustentar-me-á até ao fim dos meus dias. Horror à compreensão. Felicidade de acolher o inesperado. Estas tendências antigas acentuaram-se ao longo dos anos. Vou-me retirando pouco a pouco. O ano passado calculei que em seis dias, que equivalem a cento e quarenta e quatro horas, só tinha conversado com amigos durante três horas. O resto do tempo, solidão, devaneio, um copo de água ou um café, aperitivo duas vezes ao dia, uma recordação que me apanha desprevenido, uma imagem que me visita, uma coisa leva à outra, e já é noite. Não sou filósofo, nunca tive capacidade de abstracção. Se alguns espíritos filosóficos, ou aqueles que assim se consideram, sorriem perante o que lêem, fico contente por tê-los feito passar um bom bocado. É um pouco como estar de regresso ao colégio dos Jesuítas de Saragoça. O professor aponta para um aluno e diz: «Refute-me o Buñuel!» E está feito em dois minutos.
De algum tempo para cá, a ideia da morte tornou-se familiar. Desde os esqueletos levados pelas ruas de Calanda aquando das procissões da semana santa, a morte sempre fez parte da minha vida. Nunca quis ignorá-la ou negá-la. Mas quando se é ateu como eu, não há muito a dizer acerca da morte. Há que morrer com o mistério. Por vezes penso que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe durante nem depois. Depois do todo, o nada. Nada nos espera senão a podridão, o cheiro adocicado da eternidade. Para o evitar, talvez peça para ser incinerado.
Todos os textos acima transcritos foram retirados da autobiografia de Luis Buñuel, "O Meu último Suspiro", que se aconselha vivamente a todos os apaixonados por estas coisas do Cinema.

7 comentários:

José Morais disse...

BUÑUEL sempre foi um dos meus heróis preferidos do Cinema

Unknown disse...

Belo post, genial Buñuel. São excertos retirados da sua autobiografia "O Meu Último Suspiro", não é? Tenho esse livro e quando o li há muitos anos, marcou-me imenso.

Unknown disse...

O livro de que falo teve uma reedição há uns dois ou três anos no mercado nacional.

Elisabete Cardoso disse...

Vi a "Belle de jour" e nada, recentemente tive o privilégio de ver o "Chien Andalou" por duas vezes numa sessão "privada" (só estava lá eu a ver) grátis na Fnac e amei, as imagens, a estranheza que me causou um filme de 15 min. Já conhecia a imagem famosa do filme há anos, mas nunca tinha visto o filme. Muito bom! Grande surrealista :))))))

Rato disse...

É verdade, vem lá tudo (e muito mais), na belissima autobiografia de Don Luis. Já coloquei a respectiva capa (edição nacional), para melhor chamar a atenção para este livro obrigatório.

Beatrix Kiddo disse...

também gostei muito desse livro

Elisabete Cardoso disse...

Sugestão surrealista: um passatempo cinematográfico para ganhar um livro. É que nem todos os que gostam de cinema têm acesso às mesmas coisas, infelizmente.