segunda-feira, fevereiro 24, 2014

HÁ TIPOS QUE ANDAM NA RUA E NÃO SÃO ELES


Bogart inventou uma personagem para si mesmo. A personagem com que se vestia era um tipo arrogante, municiado de respostas insolentes. Mesmo nos dias civis, em que não tinha de arrastar os pés para o estúdio, Bogart saía à rua dentro dessa pele. Era a forma que tinha de resistir a um mundo que lhe causava desgosto. Era uma barreira, a barreira com que podia andar na rua sem ser ele. Bogart, esqueçam agora a personagem, era um tipo que chorava. Um dia, casou-se pela terceira vez. Casou-se, como todos sabemos, com Lauren Bacall. Era ele que se casava, mas para aguentar a cerimónia, levantar o véu à linda Lauren, beijar-lhe a boca à frente dos convidados e do oficiante, Bogart levou a personagem. Quem sabe se não foi até a personagem que se casou com Bacall, na longínqua Malabar Farm, no Ohio!


E estou a mentir para me fazer interessante. Bogart, ele mesmo, também foi ao casamento. Lauren Bacall apanhou-o, numa sala onde se fechou sozinho, deixando a personagem no olho da rua. Apanhou-o a chorar. Bogart estava lavado em lágrimas. E porque é que choras e ai meu amor e coisa e tal e ele explicou-lhe. Estava ali, fechado na sala, a pensar nas palavras que ouvira o oficiante dizer. Acabara de prometer acompanhar uma miúda de 20 anos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Sabia, como actor, o valor dessas palavras e chorava, comovido, com cada uma delas.


Terão tido alegrias e tristezas, tiveram saúde e doença. Mas tiveram filhos também, um rapaz e uma rapariga. Um dia, Bogart foi buscar o miúdo ao infantário. Viu-o, na sala de aula, sentado na cadeirinha da escola. Era o pequenino filho dele, sentado na carteira, a olhar para a professora. Bogart desatou em pranto. E não digo mais nada, senão, choro eu. Tinha esse segredo vergonhoso: era boa pessoa. E, nem aquele mundo de Hollywood nem o nosso mundo, estão para boas pessoas. Um tipo tem de se defender. Ele arranjou uma personagem áspera, dura, e convenceu o cinema e a vida de que a personagem era ele. Mas, tal como Lincoln avisava que não se podia enganar toda a gente o tempo todo, também a vida lembrou a Humphrey Bogart que tem dias em que não se deixa aldrabar. Em dias desses, chegávamo-nos a Bogart e esbarrávamos num coração mole, num par de olhos húmidos.
(Manuel S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 22/2/2014)

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