sexta-feira, dezembro 20, 2013

BIO-FILMO: JOAN FONTAINE

Nascida a 22/10/1917, em Tóquio, Japão
Falecida a 15/12/2013, em Carmel, Califórnia, EUA
A única actriz que recebeu um Óscar num filme dirigido por Alfred Hitchcock, e que encarnou ainda a assombrada recém-casada de “Rebecca”, Joan Fontaine, morreu domingo aos 96 anos na Califórnia, nos Estados Unidos. Além de ter sido uma das loiras glaciais de Hitchcock, contracenou com Burt Lancaster, Orson Welles ou James Stewart, e viveu uma rivalidade histórica com a irmã, a actriz Olivia de Havilland, que apaixonou Hollywood. Joan Fontaine, cujo nome de baptismo era Joan de Beauvoir de Havilland, morreu no domingo durante o sono, disse à BBC Noel Beutel, amiga da actriz. A notícia foi também confirmada pela sua assistente pessoal, Susan Pfeiffer, à imprensa norte-americana.


Nascida em 1917 no Japão, os seus pais eram ingleses e quando Joan tinha 15 anos a mãe mudou-se com ela e com a irmã 15 meses mais velha, Olivia, para a Califórnia, nos Estados Unidos, com o objectivo de melhorarem a sua saúde e de seguirem uma carreira no mundo da representação. Os De Havilland divorciaram-se e o apelido que Joan adoptaria mais tarde para a sua carreira cinematográfica foi o do padrasto, George M. Fontaine. Joan Fontaine naturalizou-se americana em 1943. Ambas as irmãs se tornaram célebres. E rivais. Joan começou a sua carreira nos anos 1930 e atingiu o sucesso uma década depois, comRebecca”, de 1940, que lhe valeu uma nomeação para os Óscares da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. O filme aconteceu-lhe quase por acaso. Como recorda o Los Angeles Times, uma noite deu por si sentada num jantar ao lado do poderoso produtor David O. Selznick, e comentou com ele que tinha acabado de ler o livro Rebecca, de Daphne du Maurier (Hitchcock voltaria à obra de Du Maurier com “Os Pássaros”). Selznick arregalou os olhos com a coincidência: «Comprei-o [o projecto de adaptação ao cinema] hoje. Pode fazer testes para participar nele?».


Concorreria com Vivien Leigh – a estrela do filme anterior de Selznick, “E Tudo o Vento Levou”, Loretta Young ou Susan Hayward para ser a atormentada protagonista num longo processo de casting que a fragilizou, muito para deleite de Hitchcock, que fazia o seu primeiro filme americano e a manteve nervosa para extrair dela uma actuação vulnerável. O seu leading man, Laurence Olivier, mantinha-a à distância por uma notória discordância pela sua escolha para o papel, que preferiria que tivesse sido atribuído à sua então namorada, Leigh. Foi o primeiro grande momento do seu percurso, cujo ponto alto em termos de reconhecimento aconteceria em 1942, quando foi galardoada com Óscar para Melhor Actriz pelo seu desempenho em Suspeita(1941), também de Alfred Hitchcock, em que interpretou Lina, uma mulher vulnerável ludibriada pelo noivo e que teme pela sua vida após o casamento - aos 24 anos, tornou-se na mais jovem vencedora do Óscar de Melhor Actriz até então. E venceu a irmã, Olivia de Havilland, que estava nomeada por A Minha História”.


«O que tinha eu feito!», escreve Fontaine nas suas memórias, No Bed of Roses, de 1978. É assim que começa a lembrar a reacção da irmã ao vê-la receber o Óscar - a Hollywood Reporter recorda esta segunda-feira que Joan Fontaine terá recusado receber os parabéns de Olivia quando subia ao palco. «Toda a animosidade que tínhamos sentido uma pela outra enquanto crianças, os puxares de cabelo, as selváticas lutas, a vez em que Olivia tentou partir-me a clavícula, tudo assomou de repente em imagens caleidoscópicas», escreveu Joan em No Bed of Roses, citada pelos Los Angeles Times. A cena repetir-se-ia quando De Havilland ganhou o Óscar e Fontaine a tentou cumprimentar, sendo rejeitada, escreve o Guardian. Foram algumas das várias cenas da rivalidade que manteve Hollywood atenta a cada episódio do folhetim entre as duas irmãs - também concorrentes no amor, tendo sido disputadas pelo excêntrico milionário Howard Hughes, que terá tido um caso com Olivia mas pedido repetidamente Joan em casamento -, que cortariam relações definitivamente nos anos 1970.


O seu ar frágil, pálido, com um olhar amedrontado mas ao mesmo tempo sedutor celebrizou-a e colocou-a nos thrillers de Hitchcock, diz o Guardian, mas mais tarde iria fazer dela protagonista de vários filmes românticos. E essas escolhas podem ter sido um dos motivos pelos quais a sua carreira não foi tão fulgurante quanto se previa. Depois do Óscar, considera o historiador de cinema David Thomson, citado pelo LA Times, «ela foi atrás de papéis românticos e nobres, sem ter a verdadeira sofisticação emocional de uma [Carole] Lombard ou de uma [Myrna] Loy, e entrou nos 'dramalhões' sem a convicção de uma Joan Crawford». A sua carreira foi também marcada pelo papel de protagonista em Carta de uma Desconhecida” (1948), de Max Ophüls, em que encarnou Lisa Berndle, ou pela sua Tessa Sanger em De Amor Também se Morre” (1943), pelo qual recebeu a sua terceira nomeação para o Óscar de Melhor Actriz e que descreveu como o seu filme, realizador e co-protagonista favoritos.

(Joana Amaral Cardoso in jornal “Público”, 17/12/2013)


FILMOGRAFIA:

1966 – The Witches / As Bruxas
1962 – Tender Is the Night / Terna é a Noite
1961 – Voyage to the Bottom of the Sea / Viagem ao Fundo do Mar
1958 – A Certain Smile
1957 – Until They Sail
1957 – Island in the Sun / Uma Ilha ao Sol
1956 – Beyond a Reasonable Doubt / A Verdade e o Medo
1956 – Serenade / Serenata
1954 – Casanova’s Big Night / A Grande Noite de Casanova
1953 – The Bigamist / O Bígamo
1953 – Flight to Tangier / Destino a Tânger
1953 – Decameron Nights / Três Histórias de Amor
1952 – Ivanhoe
1952 – Something To Live For / Renúncia
1951 – Darling, How Could You! / Alice Brincou Com o Fogo
1950 – Born to be Bad / A Deusa do Mal
1950 – September Affair / Paraíso Proibido


1948 – Kiss the Blood Off My Hands / Beija o Sangue das Minhas Mãos
1948 – You Gotta Stay Happy / Sejamos Alegres
1948 – The Emperor Waltz / A Valsa do Imperador
1948 – Letter from an Unknown Woman / Carta de Uma Desconhecida
1947 – Ivy / Lábios Que Envenenam
1946 – From This Day Forward / Esposa e Camarada
1945 – The Affairs of Susan / Os Amores de Susana
1944 – Frenchman’s Creek / A Gaivota Negra
1943 – Jane Eyre / A Paixão de Jane Eyre
1943 – The Constant Nymph / De Amor Também se Morre 
                  (nomeação para o Oscar de Actriz Principal)
1942 – This Above All / Isto Acima de Tudo
1941 – Suspicion / Suspeita (vencedora do Oscar de Actriz Principal)
1940 – Rebecca (nomeação para o Oscar de Actriz Principal)


1939 – The Women / Mulheres
1939 – Man of Conquest / Assim Nasce um Povo
1939 – Gunga Din
1938 – The Duke of West Point / O Duque de West Point
1938 – Sky Giant / Gigantes do Céu
1938 – Blond Cheat
1938 – Maid’s Night Out
1937 – A Damsel In Distress / Uma Donzela em Perigo
1937 – Music For Madame / Canto Só para Ela
1937 – You Can’t Beat Love
1937 – The Man Who Found Himself / O Homem que se Reabilitou
1937 – A Million to One
1937 - No More Ladies / Basta de Mulheres


JOAN FONTAINE: A MULHER DESCONHECIDA

Acontece-me com as pessoas que morreram, acontece-me com as pesssoas por quem me apaixono. Logo que morrem, logo que descubro que estou apaixonado por elas, deixo de as ver «em sequência» para as passar a ver em plano fixo, as mais das vezes não colhido do real delas mas de uma fotografia que delas subsistiu. Vejo o retrato, não vejo a pessoa. Quando a começo a conhecer, começo-a a desconhecer. Na pré-adolescência, foi esse mesmo o sinal que me fez saber que estava apaixonado, pela primeira vez. De repente, a imagem familiar apagou-se e ficou só o paralítico. Por mais que tentasse, não o conseguia animar. Lembro-me perfeitamente que essa descoberta foi dupla e concomitante. Aconteceu-me com quem não tem nada com isso e aconteceu-me com Joan Fontaine. A semelhança do fenómeno e a semelhança da emoção levou-me a concluir pela identidade do sentimento.


Eu vi Joan Fontaine pela primeira vez em “The Frenchman's Creek” (1944) de Mitchell Leisen, por aqui chamado “A Gaivota Negra. Já convoquei esse filme para «os meus filmes da vida» e já resumi a história de Lady Godolphin, casada com um homem muito mais velho, que partia ao serviço de Sua Majestade Carlos II Stuart, no século XVII e a deixava sozinha em imenso castelo junto ao mar. Pérfido e lúbrico era o protector que o marido lhe deixava (Basil Rathbone fazia esse vilão) e romântico e belo era o pirata que, uma noite, lhe atacou os domínios (o mexicano Arturo de Cordova). Joan Fontaine começava por repelir o pirata, mas era este quem a salvava das garras de Rathbone. No fim, fazia-se ao mar e deixava-a, com honra mas sem homem, nessa imensa morada sobre as escarpas. Salvava-se a moral, perdia-se ela.


Joan Fontaine, nascida Joan de Beauvoir de Havilland, de pais ingleses, em Tóquio, a 22 de Outubro de 1917, tinha 26 anos quando fez esse filme. Onze tinha eu quando o vi e perdidamente me apaixonei por ela, no Eden, em finais de 1946. Não sabia então que o filme inaugurava na carreira dela um new look. A frágil e assustadíssima Joan, que emergira para a celebridade em 1937 como a “Damsel In Distress”, substituindo Ginger Rogers nos braços de Fred Astaire no filme de George Stevens, elevara essa imagem ao cúmulo de tais atributos em “Rebecca” (1940) e em “Suspicion” (1941) pela mão de Alfred Hitchcock. O segundo filme dera-lhe o Oscar da melhor actriz, para que já tinha sido designada pelo primeiro. Dulcíssima, meiguíssima, continuou a ser em “This Above All” oh-so-british nos braços de Tyrone Power, (Anatole Litvak, 1942); em “The Constant Nymph, adolescente apaixonada pela suave música do suave Charles Boyer (Edmond Goulding, 1943); e no papel titular de “Jane Eyre” de Charlotte Brontê, com Orson Welles como Rochester (Robert Stevenson, 1944).


Mas, aos 26 anos, a irmã mais nova de Olivia de Havilland (a primogénita manteve o nome de família, ela escolheu a fonte, apelido do padrasto) cansou-se de tanta aflição e de tantos homens muito mais velhos, de passado misterioso e agrestes maneiras. Deixou de usar tranças ou cabelos escorridos e muito curtos. Copiou a imagem com que copiara Rebecca De Winter no fatídico baile de máscaras do filme de Hitchcock. Levantou os louros cabelos e o louro coração ao alto, aumentou os olhos, as pestanas e o tamanho dos decotes, sublinhou a boca e apareceu, deslumbrantemente bela, no technicolor de “The Frenchman’s Creek”, o mais caro filme até então feito em Hollywood. Não me peçam mais pormenores físicos que já disse que os esqueci. Mas nunca tinha visto uma mulher tão bela (pelo menos assim o achei) e essa foi a justificação que me dei para o assolapamento. Vezes sem conta, quando a imagem dela mais me fugia, corri para a entrada do Eden, para voltar a ver cartazes e fotografias e para a tentar agarrar. Infelizmente, dependia das finanças da família e infelizmente esta tinha um arreigado preconceito contra a revisão de filmes. Fosse ver outros que ver os mesmos era atirar dinheiro pela janela fora.


Só muitos, muitos anos depois revi “The Frenchman’s Creek”. Mas a paixão apagara-se e Joan Fontaine já era, para mim, muito mais, outras imagens. Nessa, só a voltei a ver, nesses anos 40 dos meus adolescentes inícios, em “The Emperor Waltz” (Billy Wilder, 1948) e em “Kiss The Blood Of My Hands” (Norman Foster, 1948). No primeiro, era uma condessa austríaca, viúva, na corte de Francisco José Tinha uma cadela de raça e o imperador mandava-a chamar, não para se cruzar com ela, mas para cruzar o animal com um outro da sua estimação. Pelo meio, metia-se o cãozinho de Bing Crosby (género his master's voice) e o cheiro das coisas pretas podia mais do que o odor do sangue azul. Para Billy Wilder, na sua proverbial «maldade», era o modo possível de fintar os códigos censórios e de dar a ver - a cores - que o que se passava entre cães tinha exactamente o mesmo nome daquilo que se passava entre Joan Fontaine e Bing Crosby.


No segundo, era uma enfermeira inglesa e o breve puritanismo não chegava para lhe evitar aproximável atracção por Burt Lancaster (ao tempo em que os 2ºs balcões portugueses lhe chamavam o Bruto de Lencastre) marinheiro e cadastrado. E eram os beijos dela que lhe lavavam as mãos criminosas e ensanguentadas Em qualquer dos filmes fora-se a duradoura ninfa (papel que, aliás, lhe valeu mais uma designação para o Oscar) e ficara a ardentíssma loura, com sonhos tão húmidos como os meus, com piratas, donos de cães de maus costumes e bandidos tatuados. Os anos passaram para ela e para mim. Mas, como o cinema é máquina de eterno retorno, foi essa passagem dos anos que me levou a conhecê-la na imagem angélica dos seus tempos mais oscarizados. Lembram-se do nome dela em "Rebecca"? Não se podem lembrar, porque não o tinha. Uma das grandes astúcias do filme residia na oposição entre a mulher sempre nomeada e jamais vista (Rebecca) e a mulher sempre vista e jamais nomeada: ela própria, dama de companhia de Florence Bates, que não sabia onde meter as mãos nem o que comer ao pequeno-almoço e passava, sem nome próprio nem apelido, dessa apagada condição à de segunda Lady De Winter.


Mas, quanto mais vejo o filme (e esse já o vi mil vezes) mais se me impõe outra astúcia, normalmente pouco comentada. É que não há outra Rebecca senão Joan Fontaine e que esta, qual médico e monstro, é ao mesmo tempo a reencarnação da funesta senhora de Manderley e a catarse dela. Surge no filme a Laurence Olivier, quando este, suspenso dos abismos, recorda Rebecca, de certo modo como reaparição dela. Rebecca é o único nome próprio que lhe dão. Precisamente a chama assim a cunhada (Gladys Cooper) quando a vê descer a escada com o vestido da outra, nessa nova reaparição que desencadeia tudo, na noite em que descobrem, no fundo do barco, o corpo da rival. E é ela quem, na sequência da cabana, sugere ao marido o plano que lhe permitirá passar por inocente. E, quando fica sozinha em Manderley, a mansão arde, consumindo nas chamas tudo e todos que a tinham querido expelir como importuna. De resto, não é todo o filme um sonho dela? («Last night, I dreamed I was again in Manderley»). Se é gata borralheira, é gata borralheira de um barba azul e ninguém casa inocentemente com barbas dessas.


“Suspicion” é uma variação do mesmo tema. Se não ficou na versão final a diabólica história da carta em que ela denunciava Cary Grant, ficou o suficiente para sabermos quanto ela merecia esse copo de leite, cuja brancura é tão suspeita como a dela E, de imagem em imagem, Joan Fontaine surgiu, pela última vez, como outra mulher desconhecida: essa que, no fabuloso filme de Ophuls, baseado em Stefan Zweig (“Letter From Na Unknown Woman”, de 1948) era esquecida pelo músico (Louis Jourdan) que perdidamente amara em Viena. Disse pela última vez? É verdade que Joan Fontaine ainda filma - aos 71 anos - e que o João César Monteiro a viu em carne e osso este ano, em Salsomaggiore, a presidir ao júri do Festival. Mas todos os filmes que fez de 1950 para cá (incluindo um Nicholas Ray – “Born To Be Bad”, de 1950 - e um Fritz Lang – “Beyond a Reasonable Doubt”, de 1956) já só dão uma imagem bem diversa, algo antipática, algo agressiva, algo frígida. Bem conhecível se tornou, afinal. Chamou às memórias (1978) No Bed of Roses e nenhuma rosa nem nenhuma cama se evola desse livro, onde não tira a mãe da boca e onde perpassam, sem existência, os homens e os filmes da vida dela. Mas, sob a noite dos flirties, o retrato desta desconhecida «leaves a dark / unbroken glory, a gathered radiance / a width, a troubling peace.» Muito suave, muito obscura. Foi o meu September Affair, ao vago som de Rachmaninoff.

(João Bénard da Costa, 1989)

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