Viajar de avião pelo mundo para promover os filmes que fazem tornou-se, para alguns realizadores, uma componente quase obrigatória do trabalho. Sendo uma espécie de viagem alargada pelo ego, é
suposto que também ajude a aumentar as receitas de bilheteira; para dizer a verdade, depois de cerca de uma semana, os aspectos de elevação do ego da viagem dissolvem-se em tédio
ou exaustão e está-se pura e simplesmente perante um passeio publicitário para vender lugares. Tendo descoberto isto seja lá onde for que se esteja - Sydney, Austrália ou St. Louis, Missouri, Paris ou Copenhaga, Belgrado ou Estocolmo - as perguntas feitas são idênticas e uma grande parte do gozo desaparece. Por mais acolhedores que os ambientes sejam - The Plaza, Claridge's, ou George V (e quando se anda nestas viagens a única coisa que se vê é a suite do hotel onde se está) - há um
momento em que se tem a certeza de enlouquecer se mais alguém pergunta porque é que se filmou a preto e branco. (Aconteceu ser essa a pergunta de abertura de quase todos os meus entrevistadores durante a promoção de "The Last Picture Show", embora
saiba que qualquer realizador ou actor que anda nestas tarefas não escapa à mesma coisa).
No começo diz-se a verdade - em tom divertido, espera-se,
e sem excessivo pretensiosismo - mas depois da décima segunda ou vigésima vez
(depende da estabilidade de cada um) a natureza da verdade começa a mudar
lentamente, se não por perversidade, pelo menos pelo puro prazer do gozo. No final da minha viagem, por exemplo, reduzi a resposta a um seco, «Porque Orson Welles me disse para fazer assim», que pelo menos tinha o efeito de encerrar a questão. O facto de isso ser parcialmente verdade não alterava a expressão de desconfortável desapontamento nas caras dos meus
inquisidores, que esperavam algo de mais grandioso sobre a arte cinematográfica. Julgo que foi em Melbourne que uma entrevista acabou antes de ter começado quando uma infortunada jornalista - dobrada sob o peso de gravador e câmara - apareceu no fim de um dia carregado de perguntadores profissionais para me pôr a questão do preto e branco. Olhei espantado para ela durante uns segundos desgraçados, e respondi: «Ficou mais barato», e saí da sala para me recompor.
Nem sempre é tão mau e vamos lá, é melhor ser interrogado que ser ignorado; por outro lado, as pessoas são geralmente delicadas e sérias e estão interessadas, a viagem é de borla e o pessoal das P&R tenta tudo para tornar as coisas perfeitamente suportáveis; é o jogo em si que é cansativo. Acho que o momento que preferi foi em Atlanta, Geórgia, com Ben Johnson. Estávamos a beber um copo ao fim do dia com os críticos dos dois jornais mais importantes do sítio, e como eu tinha acabado de chegar da Europa e da mesma velha rotina, Ben, que estava ali pela primeira vez, tentava distraí-los do meu mau humor e das minhas respostas monossilábicas. Os prémios da Academia estavam a chegar, Ben tinha sido nomeado, e depois de algumas perguntas pesadas e três bebidas, recostou-se com alarde e disse aos dois jornalistas, «por que não vão vocês ver essa coisa dos Oscars e conhecer alguma bisbilhotice de merda à Hollywood?» Um dos críticos estava a meio de um gole, creio, e quase lhe dava uma coisa, mas, há que o reconhecer, recuperou rapidamente e ambos desataram a rir, acompanhados por mim e por Ben, e acabaram
ali de vez as perguntas sérias do dia. Se ao menos Ben pudesse estar sempre por perto...
Não sei por que pecados os outros realizadores
ou actores têm de penar, mas no meu caso pessoal mereço toda a chatice que tenho, pois também eu já estive do outro lado, do lado do gravador e do bloco de notas. No meu estilo de jornalista-crítico-historiador do cinema, tenho a certeza que as perguntas que fazia eram tão difíceis de suportar como as que agora me são dirigidas. Uma mania especialmente desagradável que eu tinha - e que é
comum à
maioria
dos entrevistadores, temo eu - era rebuscar, numa espécie de trabalho de casa, várias afirmações seleccionadas que a vítima teria feito. Lia-as então ao desgraçado e pedia-lhe para as desenvolver ou analisar. Contudo, como Mr. Welles me fez ver de uma forma um tanto áspera quando lhe fiz isso mais vezes do que seria aceitável, se uma afirmação significativa e concisa merece ser citada, então não necessita de amplificação, porque se necessita não merecia ter sido citada. É claro que isto é
assim se a gente ainda se consegue lembrar do que disse. Orson lembrou-se da velha história de Robert Browning: quando lhe pediram para explicar um verso que havia escrito, Browning respondeu, depois de pensar um pouco: «Quando isso foi escrito, só Deus e Robert Browning sabiam o que queria dizer. Agora, só Deus sabe.»
Os realizadores mais velhos encontram maneiras
diversas de enfrentar tudo isto - os mais novos são apanhados por serem ou infantilmente entusiásticos, pomposos, pretensiosos ou rudes. John Ford, por exemplo, finge muito simplesmente não se lembrar de um único plano, cena, actor ou incidente de qualquer dos seus filmes. É claro que se lembra perfeitamente de tudo até ao mais ínfimo pormenor, mas acaba com qualquer entrevista quando uma pergunta que começa com «Em "Young Mr. Lincoln", fez ... » é interrompida com
«Fui eu que fiz esse filme?» Se a pergunta é verdadeiramente complicada e profundamente intelectual, Ford diverte-se a fingir que é surdo para obrigar a pessoa a repeti-la. E a repeti-la cada vez mais alto. Ora, podem crer que não há pergunta na terra que soe menos que vazia se for feita cinco vezes num tom de voz cada vez mais alto. Quando obrigou a pessoa a fazer a pergunta tão alto quanto possível e se assegura que já se percebeu a estupidez de tudo aquilo, olha para o entrevistador com uma fugidia expressão de pena e deixa-o com um «Não sei.»
As respostas de Joseph von Sternberg eram dadas de forma a levar a pessoa que fazia as perguntas a pensar que estava louca. «Por que é que Dietrich sempre usou penas nos seus filmes?», perguntar-se-á, e ele responderá, «Ela nunca usou penas.» «Mas Mr. Sternberg, em "The Scarlet
Empress", as plumas que ela ... » «Não me lembro.» E era o fim da conversa. Hitchcock rodeia as perguntas de que não gosta contando uma história divertida que normalmente tem pouco a ver com o que lhe foi perguntado, mas é tão interessante ou elaborada que quando chega ao fim o entrevistador já se esqueceu do que queria saber. Charlie
Chaplin, numa idade avançada mas perfeitamente lúcido, voltou-se para um interrogador demasiado entusiástlco e disse-lhe que lamentava muito, mas custava-lhe imenso recordar fosse o que fosse porque tinha tido uma trombose há pouco tempo.
E depois, no estrangeiro, há a barreira da
língua. Por vezes chega a ser um problema mesmo em Inglaterra. Gastei boa parte de meia-hora a contar a um jornalista londrino algumas das histórias de Jimmy Stewart que mais aprecio. Quando acabei, ele perguntou-me quem era Jimmy Stewart. «Jimmy Stewart!?», disse eu. «Não sabe quem é Jimmy Stewart?» Não era tão novo como isso - ninguém é tão novo como isso, pensei. Ele estava um pouco irritado. Tentei de novo. "Mr. Smith Goes to Washington", disse,
«James Stewart» «Oh», disse ele, «James
Stewart»
- e depois, com um toque de irritação na voz, «Não o conheço suficientemente bem para o tratar por 'Jimmy'.» E lá tive eu que lhe explicar que não estava a tentar indicar familiaridade ao tratá-lo por Jimmy, já que toda a gente na América o conhece por esse nome e que mesmo o seu recente e não muito interessante programa de televisão se chamava The Jimmy Stewart Show, Acho que não consegui convencê-lo. Tenho a certeza que continua a pensar em mim como um gabarola que seria capaz de ir ao ponto de tratar James Mason por «Jimmy.»
Já que estou a falar de Mr. Stewart, aproveito
para dizer que ele foi também a causa de grande consternação para mim em Itália. Tenho receio que uma das minhas habilidades de salão mais repetidas seja a imitação da característica voz de Stewart - para não falar da de Cagney, Cary Grant e mais alguns. Não sou nenhum Rich Little (que, a propósito, deve ser o melhor imitador que jamais houve), mas estes numerozitos obtêm habitualmente bastante êxito. Ora, lá estava eu em Roma a imitar Stewart para a gente dos jornais e a receber os mais gelados e incompreensíveis olhares até que um amigo piedoso me informou do facto de em Itália todos os filmes americanos serem dobrados e de nenhum italiano ter alguma vez ouvido a voz de Jimmy Stewart - ou de Grant ou de Cagney ou, efectivamente, de qualquer estrela de cinema americana. Era sempre um bom actor italiano a falar por eles. Por isso, Rich, nunca vás a Itália - ou
ao Japão, pela mesma razão.
Quando se vê um filme de John Wayne em Tóquio,
dizem-me, soa sempre como Toshiro Mifune. Eis um pensamento avassalador que
explica bem um regresso aos filmes mudos como a única verdadeira linguagem
universal e me faz recordar a inteligente afirmação de Jean Renoir, «Numa era
verdadeiramente civilizada», disse ele, «como o século XIII, uma pessoa que dobrasse
a voz de outra seria queimada por herética - porque isso faria supor que um
homem podia ter duas almas.» (Lembrei a Mr. Renoir esta
afirmação num encontro recente que tivemos e quando o tópico da nossa conversa
passou para a maneira estranhamente desconjuntada que o Presidente Nixon tem de
intervir na televisão, ele disse, «Já sei! Nixon é dobrado!»)
Seja como for, talvez essa história de
pergunta-resposta deva ser posta de parte. Afinal de contas, um bom filme, como qualquer boa obra de arte, não precisa realmente de ser explicado pelo autor. Como os cómicos costumam dizer das suas piadas, «Quando é preciso explicá-las, é
sinal
de que não prestam.» É claro que isso também acabaria com os críticos, e como também eu pertenci com gosto a esse circuito, evito sugerir medida tão drástica. Não quereria impedir ninguém de ver e falar de filmes, embora por vezes tenha a estranha sensação de estarmos todos a falar para o boneco. Haverá quem se importe? Na América há cada vez menos pessoas a irem ao cinema, assim como há cada vez menos jornais e revistas a falarem dele. Os filmes e os jornalistas estão a ser lenta mas irrevogavelmente levados à extinção pelo olho laser todo-poderoso da televisão. Talvez não seja o extremo proposto por Mr. Orwell mas o proposto por Mr. Kubrick a acabar com as salas de cinema e a imprensa escrita. Só a televisão. Nessa sombria bola de cristal posso ver que os únicos críticos que ficarão, estarão também na TV, e certamente não se anteciparão
aos
filmes televisivos para nos dizer se os devemos ver ou não - nenhum patrocinador o permitirá nem mesmo no ano 2001 - mas sem dúvida que aparecerão a seguir para explicar o que não enredemos ou para nos dizer quão imbecis somos por
ter gostado de os ver.
Estará a velha forma P&R morta de vez? Pedir-se-á aos realizadores e actores desses novos marcos miliários para explicar o
que fizeram e porquê? Provavelmente não. O que será que pode acabar com esta mania
que nos conduziu a uma era que Welles descreveu como «uma época em que a maior
parte dos livros são acerca de livros.» E, é claro, não é possível eliminar as
entrevistas na televisão. Na passagem do novo século, serão certamente a única
forma de conversão conhecida dos mortais. E, afinal, a primeira pergunta que
Dick Cavett me fez foi, «Porque é que fez o seu filme a preto e branco?» E, em
frente de mais pessoas do que alguma vez hão-de ver o meu filme, respondi-lhe
como se nunca me tivessem feito essa pergunta.
(Peter Bogdanovich, Maio de 1973)
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