Um filme de ERNST LUBITSCH
Com Herbert Marshall, Miriam Hopkins, Kay Francis, Charles Ruggles, Edward Everett Horton, C. Aubrey Smith, Robert Greig, etc.
EUA / 83 min / PB / 4X3 (1.37:1)
Estreia nos EUA a 21/10/1932
Estreia em PORTUGAL a 16/1/1934
(Lisboa, cinema S. Luiz)
Gaston Monescu: «It must be the most marvelous supper.
We may not eat it, but it must be marvelous»
Ainda estamos a ver a marca da Paramount e já ouvimos a canção de Robin que dá o título ao filme. Para que ninguém se engane sobre a origem do "trouble", o "paradise" é identificado como uma cama de casal, primeira imagem da obra. E antes de irmos até lá (à cama), a abertura faz-se com o lixo e com um homem a despejar caixotes do dito e a levá-los, Veneza fora, na conveniente gôndola. O tom está dado, a associação também. É do lixo que subimos para o luxo (o Hotel Venezia) onde o senhor da suite 235-6-7-9 jaz no chão cloroformizado por um vulto que sai pela janela. Cá fora o homem do lixo canta O Sole Mio (é noite e não há sol) e a câmara num travelling percorre o exterior do hotel (muitas suites e muitos quartos, iluminados ou às escuras) antes de se imobilizar na suite 300-302, onde Herbert Marshall contempla romanticamente o luar. Acabou de descobrir que a sua Julieta era Cleópatra e diz para o criado que "os começos são sempre difíceis". Lubitsch desmente-o, pois, em três minutos de filme, já deu todas as pistas. Em breve saberemos que o Barão não era Barão, que a Condessa não era Condessa (fabuloso gag do telefonema à megera que é mãe de Lily) e nas novas identidades (ladrões profissionais) amam-se mais e melhor do que nas aristocráticas vestes com que se tentaram "comer" um ao outro.
A história paralela de Everett Horton não é mais edificante. Ainda vimos as duas ("business partners", não é como ele lhes chama?) que tanto tocaram à campainha durante o assalto e por causa de quem abriu a porta. E persiste uma dúvida (que só aumenta ao longo do filme) que não foram só as amígdalas que o levaram a dizer "Ah" ao "such a charming gentleman" que era Herbert Marshall. O tempo duma elipse radiofónica e já estamos em Paris (Paris tão esquematizada quanto Veneza o fora) e no reino dos perfumes de Colet. O traço de ligação faz-se por Everett Horton, e Herbert Marshall reaparece para roubar a mala de Mme Colet na genial sequência da ópera. Gaston e Lily recordam romanticamente a noite de Veneza, até que realidades mais prácticas os vêm acordar nesse quarto que evidencia uma certa crise. E num imparável sucesso de elipses (pontuada pelos «No Madame Colet», «Yes Madame Colet», «No Monsieur Le Val» , «Yes Monsieur Le Val») percebemos que Kay Francis está farta de ser viúva, que a "guerra dos pretendentes" (genialíssimos Ruggles e Everett Horton) vai acabar em "aliança na desgraça" e que Mme. Colet atraiu ladrões com razoável constância (é outro fabuloso secundário - C. Aubrey Smith - que vai dar lugar à última metamorfose do filme).
Ninguém nos engana e todos nos enganam. E se Herbert Marshall conquistara Miriam Hopkins com um abraço-safanão e o roubo da liga, conquista Madame junto a uma cama do século XVIII e ao prometer-lhe que, como secretário, lhe fará o mesmo que se fosse pai dela. E quando Miriam Hopkins - metamorfoseada em Mme. Gauthier - de óculos e carrapito aprende que «the trouble with mothers is that first we like them and then they die» aprende também quem Mme. Colet quer e por quanto: exactamente 50 francos "in times like this". Por essa altura, teme Lily que o ladrão dela se transforme num "useless gigolo". A tentação pelo menos existiu, e existiu na mais fabulosa elipse da obra de Lubitsch. Aquele plano fixo sobre o relógio desde as cinco e dez da tarde às duas da manhã, tendo como único ruído de fundo gargalhadas, suspiros e muitos, muitos mais Mme. Colet e Mr. Le Val. Num só plano, sem corte, avançou-se tanto como na decoupadíssima sequência do jantar em Veneza com a "condessa". O problema é que até os relógios mudam e, quando aparece o outro, começará a vertiginosa dança das portas a culminar na última noite e no trautear do criado.
Dois diálogos antológicos do "Lubitsch touch"?: Aí vão. A conversa durante a festa: «She says he is her secretary. He says he is her secretary - Maybe I'm wrong. Maybe he is her secretary». Ou as várias coisas "together" até à sesta "to ... '', ou o segredo de Constantinopla. Mas se toda a gente está ali para enganar toda a gente, como atrás disse, ninguém no fundo engana ninguém. Monsieur Giron certamente não será denunciado como Adolphe porque sabe de mais sobre Monescu. Monsieur Filiba descobriu com a gôndola a história do médico que tinha dito "Ah" a Gaston. Mas essa descoberta não o fará recuperar coisa nenhuma, a não ser a amizade do Major (talvez façam um belo par). E Mme. Colet tinha afinal os mesmos gostos de Lily, só que a companhia se dissolveu por não o assumir até ao fim. Um arrufo entre Gaston e Lily? É certo. Mas resolve-se num taxi, como se resolveu em Veneza. Graças a Deus, em 1931, os códigos ainda permitiam que o crime compensasse. E que a arte de Lubitsch fosse como aqui é: a absoluta elisão da absoluta irrisão. Good night Monsieur Lubitsch.
João Bénard da Costa
CURIOSIDADES:
- O filme é baseado na peça húngara "A Becsuletes Megtalalo" ("The Honest Finder"), que se estreou em Budapeste em Dezembro de 1931
- A re-edição do filme foi proibida três anos depois da estreia, em 1935, devido ao famigerado Código Hays, o qual tinha começado a ser aplicado no ano anterior. Retirado da circulação comercial, só voltaria a ser exibido em 1968. Nunca foi editado em VHS e só em 2003 apareceu o respectivo DVD
- Herbert Marshall perdeu uma perna durante a Primeira Grande Guerra, pelo que não podia desempenhar papeis que exigissem esforço físico. As sequências em que desce e sobe as escadas da casa de Madame Colet foram feitas por um duplo do actor
- "Trouble in Paradise" é dos filmes de Lubitsch aquele que melhor evidencia o chamado "The Lubitsch Touch", um estilo subtil e elegante que usa as elipses temporais como referências básicas da sua cinematografia
2 comentários:
Preciso conhecer melhor a obra do Lubitsch. Esse vai entrar na minha lista!
Excelente postagem de fotos e
análise do estilo de Lubitsch, que
dava um toque de classe europeu em
Hollywood.
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