sexta-feira, julho 11, 2025

LE CHARME DISCRET DE LA BOURGEOISIE (1972)

O CHARME DISCRETO 
DA BURGUESIA

Um filme de LUIS BUÑUEL



Com Fernando Rey, Stéphane Audran, Jean-Pierre Cassel, Delphine Seyrig, Paul Frankeur, Bulle Ogier, Milena Vukotic, Maria Gabriella Maione, Claude Piéplu, Michel Piccoli, etc.

FRANÇA / ITÁLIA / ESPANHA / 
102 min / COR / 16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA a 15/9/1972
Estreia em PORTUGAL (Lisboa): Novembro de 1973
Estreia em Moçambique (L.M.) a 12/1/1974 (cinema Dicca)



Colonel: «Marijuana isn't a drug. Look at what goes on in Vietnam. 
From the general down to the private, they all smoke»
Mme. Thevenot: «As a result, once a week they bomb their own troops»
Colonel: «If they bomb their own troops, they must have their reasons»


Nas suas memórias, Luis Buñuel dedica um capítulo ao que chama "les plaisirs d'ici bas". Ao contrário do que se possa pensar, o sexo não ocupa o primeiro lugar, vem depois do alcool e do tabaco. Buñuel diz mesmo que os dois últimos «acompanham muito agradavelmente o acto de amor. Geralmente, o alcool deve ser antes e o tabaco depois» e acrescenta que ficou muito contente com o desaparecimento progressivo e finalmente total do seu instinto sexual, mesmo em sonhos, nos últimos anos da sua vida. «Estou muito contente, como se me tivesse, por fim, desembaraçado dum tirano. Se o Diabo me aparecesse a propor uma recuperação do que chamam a virilidade, respondia-lhe: Não, muito obrigado, não quero mais. Fortalece, antes, o meu fígado e os meus pulmões, para poder continuar a beber e a fumar à vontade.»





"Le Charme Discret de la Bourgeoisie" é um divertimento sobre uma burguesia, de que Buñuel não se exclui, e para o qual conta com a nossa cumplicidade ("burgueses somos nós todos / burgueses desde pequenos / burgueses somos nós todos / ou ainda menos", como se diz num poema de Cesariny). Será só isso? Alguns comentadores têm dito que sim e não escondem o seu desapontamento perante um filme divertidissimo, com achados prodigiosos, mas que lhes parece ter perdido muito da violência e virulência das obras anteriores. Por isso, este "Charme" teve o sucesso que teve, teve os prémios que teve e culminou com o mais alto galardão do cinema: o Oscar de Hollywood para o Melhor Filme de Língua Estrangeira, que Buñuel arrecadou aos 72 anos, depois do que Hollywood lhe fez e depois de 30 anos de uma carreira maldita.




Aliás, Buñuel estava perfeitamente consciente do tom ameno que em geral se encontra na obra. A quem falou de sátira feroz à burguesia, respondeu: «Não é uma sátira e muito menos feroz. Creio que fiz este filme com um sentido de humor amável. Mas também não procurei que as pessoas rissem às gargalhadas do princípio ao fim». E mesmo a quem foi mais longe e quis ver no plano várias vezes repetido dos protagonistas a andar pela estrada, sem chegar a parte alguma, uma alegoria à ausência de destino histórico da burguesia, Buñuel desenganou-os: «Compreendo essa interpretação, até porque o filme termina com os personagens a andar pela estrada. Apesar disso, lamento dizer-lhes que não há nenhuma mensagem. Até porque teria vergonha de me ter proposto a mim próprio - vou demonstrar que a burguesia está perdida. Aliás, creio que o que está em vias de extinção não é só a burguesia. Em muitos países, o proletariado vai-se aburguesando pouco a pouco, vai-se tornando menos revolucionário.»



Sin embargo, Don Luis... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Se não há sátira feroz, se não há mensagem, se não há irrisão, se não há subversão, se não há crueldade, este filme não é o do fantasma de Buñuel, nem de um Buñuel adormecido. A sua mão (a sua câmera) sente-se do princípio ao fim e o "charme discreto" da burguesia passa pelo desencanto indiscreto duma classe que pretende viver para o prazer, mas que o frustra constantemente. Os dois tipos de prazer sempre invocadas neste filme (os prazeres da mesa e os prazeres da cama) estão permanentemente em cena mas quase sempre são adiados e raramente consumados.

Sucedem-se jantares e almoços, sempre com o mesmo grupo. Fala-se de iguarias de fazer crescer água na boca. Mas, quando se passa ao acto, surge sempre a interrupção. Nunca ninguém come nada, a não ser, no fim, Fernando Rey, acordando do seu último pesadelo, a matar a fome com uns restos guardados no frigorífico. A mesma coisa para as cenas de sexo: Stéphane Audran e Jean-Pierre Cassel são interrompidos pela chegada dos convidados e têm que andar às voltas para conseguir satisfazer o seu desejo; quando Fernando Rey se prepara para ter relações com Delphine Seyrig, toda a espécie de impedimentos acontece até à chegada do marido. Só não se frustra um acto e esse é de tal forma violento que há quem diga que foi para o filmar que Buñuel fez o filme. Refiro-me ao assassinato do moribundo pelo bispo. Por alguma razão essa cena foi cortada pela censura, em Portugal, em 1973...


CURIOSIDADES:

- Luis Buñuel é referido nos créditos finais como responsável pelos efeitos sonoros. No entanto encontrava-se praticamente surdo quando rodou o filme.
   
- Luis Buñuel tinha uma verdadeira obsessão com as baratas que aparecem em muitos dos seus filmes. Aqui veêm-se na cena da tortura na prisão a sair do piano.







«O trabalho foi muito longo. Escrevemos cinco versões do argumento. Era preciso encontrar o equilíbrio certo entre a realidade da situação (um grupo de amigos tentam cear juntos sem o conseguir), que devia ser lógica e quotidiana, e a acumulação de obstáculos inesperados que, apesar disso, não deviam parecer fantásticos ou extravagantes. Nunca quis dizer: Vou demonstrar aqui que a burguesia está perdida. Eu mesmo sou burguês, mas discreto. Se fosse um burguês comme il faut viveria dos meus rendimentos, não faria filmes. Quando seleccionaram o filme para o Óscar e uns jornalistas mexicanos me perguntaram se o ganharia, respondi: Sim, estou convencido que sim. Paguei os 25 mil dólares que me pediram. Os norte-americanos têm os seus defeitos, mas são homens de palavra. Quatro dias depois da brincadeira, escândalo em Los Angeles, mas finalmente ganhei o Óscar, o que me permite repetir que os americanos têm os seus defeitos, mas são homens de palavra.»



quinta-feira, julho 10, 2025

THE POSEIDON ADVENTURE (1972)

A AVENTURA DO POSEIDON
Um Filme de RONALD NEAME


Com Gene Hackman, Ernest Borgnine, Shelley Winters, Red Buttons, Roddy McDowall, Stella Stevens, Jack Albertson, Carol Lynley, Pamela Sue Martin, Arthur O'Connell, Leslie Nielsen, etc.


EUA / 117 min / COR / 
16X9 (2.20:1)

Estreia nos EUA a 13/12/1972
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.) a 19/5/1973 (cinema Scala)



Reverend Frank Scott: “Please GOD, NOT this woman”

O remake feito em 2006 deste clássico dos anos 70 veio provar, mais uma vez, que toda a técnica digital disponível hoje em dia não é prerrogativa para se conseguir fazer um bom filme. “The Poseidon Adventure” foi realizado num tempo em que a palavra blockbuster ainda não tinha sido inventada; e mesmo que já existisse não teria o significado que tem actualmente – algo produzido com orçamentos colossais mas regra geral com resultados a roçar a imbecibilidade. Do que se falava naquele início dos anos 70 era de “cinema-espectáculo”, ou neste caso concreto, de “cinema-catástrofe”.

“The Poseidon Adventure” veio precisamente enaltecer e aprimorar esse “cinema-catástrofe”, sendo por isso olhado hoje em dia como um dos exemplos mais felizes, e conotado inclusivé como o maior clássico do género. Baseado numa novela de Paul Gallico, o filme relata-nos o desastre ocorrido com o S.S. Poseidon, um transatlântico na sua última viagem, entre Nova Iorque e Atenas. Na noite de 31 de Dezembro, quando todos os passageiros comemoram a chegada do Ano Novo, um terramoto sub-aquático vai ocasionar uma onda gigantesca de 30 metros de altura, cuja força destruidora vai embater no navio virando-o literalmente do avesso.

As explosões sucedem-se, indo submergir toda a zona do restaurante onde se comemorava a passagem de ano. Dez passageiros conseguem sobreviver e é o seu percurso em direcção ao casco do navio (agora situado acima deles) que iremos acompanhar ao longo do filme, através de peripécias diversas e interrogando-nos sempre (ou não, caso conheçamos já o desfecho) quais deles conseguirão chegar sãos e salvos ao fim daquela odisseia.

A ideia do filme é brilhante e executada com grande mestria. Cenários magníficos e deveras originais (tudo se encontra de pernas para o ar, desde o salão onde a aventura pela sobrevivência começa até às casas de banho, cozinhas e todos os outros compartimentos do navio) conferem a “The Poseidon Adventure” um grau de autenticidade pouco comum neste género de filmes. Junte-se a isso um brilhante naipe de actores e o resultado não poderia ter sido melhor. Na primeira meia-hora do filme fomo-nos familiarizando com cada um dos heróis desta grande aventura e por isso iremos sofrer e torcer por todos eles até ao final.

E não se julgue que o conhecimento antecipado da história ou de quem fica pelo caminho tira emoção ao visionamento deste filme. Pelo contrário, “The Poseidon Adventure” está tão bem feito, tão bem construído em todas as suas particularidades e propósitos que a repetição da sua visão nunca nos cansa. Pessoalmente, vi-o pela primeira vez em 1973, pouco depois da sua estreia mundial, e desde essa altura já perdi a conta das vezes em que voltei a vê-lo, e sempre com o mesmo prazer.

Gene Hackman é inesquecível no papel de um reverendo de ideias avançadas, que naturalmente se torna no líder da expedição. Ernest Borgnine é o polícia resingão que casou com uma prostituta (Stella Stevens num desempenho divertidissimo) e Shelley Winters, aqui já com 52 anos, dá-nos uma Belle Rosen sensacional, que está na origem da cena mais comovente do filme. Mas todo o restante elenco – Red Buttons, Roddy McDowall, Jack Albertson e as jovens Carol Lynley e Pamela Sue Martin – é de grande qualidade, como aliás a publicidade do filme teve o cuidado de referir na altura como sendo na sua grande maioria actores distinguidos pela Academia de Hollywood.

Um dos grandes trunfos da “Aventura do Poseidon” é o clima de suspense claustrofóbico que se vai adensando à medida que a história progride. O argumento foi cuidadosamente construído de modo a proporcionar ao espectador uma adrelina sempre em crescendo até ao clímax final. Tudo começa idilicamente no grande jantar de fim-de-ano mas é depois da tragédia acontecer que o filme arranca a todo o gás, levando-nos a nós espectadores com ele. E no entanto como são importantes aqueles primeiros trinta minutos onde, como atrás já se disse, ficamos a conhecer cada um dos principais intervenientes. Sempre que se revê o filme saboreia-se o mais possível a despreocupação de cada um daqueles momentos, devido a saber-se de antemão o que vai acontecer a seguir.

Tenho lido alguns comentários onde se pretende comparar “The Poseidon Adventurea “Titanic”, quer no bom quer no mau sentido. Nada de mais inútil, até porque o filme de Cameron se situa num patamar completamente diferente. A única ilação possível é a de que este filme é um percursor muito honroso de “Titanic”, que porventura nele foi beber grande parte da sua inspiração. Inclusivé a nível técnico, como por exemplo os enormes sistemas hidráulicos para simular o naufrágio, já utilizados neste filme vinte e cinco anos antes.

Sete anos depois o produtor deste filme, Irwin Allen realizou uma espécie de sequela, conhecida como “Beyond The Poseidon Adventure”, com Michael Caine e Sally Fields a encabeçarem mais um cast de conhecidos nomes do cinema daqueles anos. O argumento, sem pés nem cabeça, relatava a história de uma série de aventureiros à procura de um tesouro escondido nos destroços do Poseidon. Era uma vez mais Hollywood a insistir ingloriamente na miragem do lucro fácil e rápido. Mas felizmente que os êxitos sempre foram feitos pelo público e não programados em quaisquer gabinetes.

CURIOSIDADES:

- Paul Gallico inspirou-se em acontecimentos vividos com ele próprio numa viagem a bordo do Queen Mary para escrever a novela que deu origem ao filme

- Todo o filme foi rodado em sequência para tornar visualmente mais compreensível o aumento de esquimoses (algumas fictícias, outras reais) e sujidade, experimentados na pele e nas roupas de cada um dos principais intervenientes

- Muitas das sequências foram rodadas no S.S. Queen Mary, ancorado em Long Beach, na Califórnia. Noutras foi usado um modelo construído com base nesse mesmo navio e que actualmente se encontra em exposição no Museu Marítimo de Los Angeles

- Apesar de terem sido usados cerca de 125 duplos no filme, foram os próprios actores que se sujeitaram às difíceis e cansativas filmagens exigidas pelo argumento - excepto nas sequências mais perigosas - chegando inclusivé a queixarem-se aos produtores do filme por causa da intensidade de algumas dessas cenas

- Shelley Winters engordou cerca de 15 quilos para representar a personagem de Belle Rosen e teve aulas de natação com um treinador olímpico por causa das cenas rodadas debaixo de água

- Petula Clark recusou o papel de Nonnie Parry, atribuido a Carol Lynley. O tema que esta interpreta no filme (na realidade a voz pertence a Renée Armand, trata-se de uma dobragem) – “The Morning After” – foi depois interpretado por Maureen McGovern, conseguindo um certo êxito na altura, devido em grande parte ao sucesso alcançado pelo filme. A canção, da autoria de Al Kasha e Joel Hirshhorn, ganhou o Oscar da melhor canção do ano. Ao filme foi ainda atribuído um Prémio Especial pelos efeitos visuais e teve ainda mais 7 nomeações para os Oscars. Shelley Winters ganhou o Globo de Ouro para a melhor actriz secundária e Gene Hackman arrebatou o BAFTA inglês para o melhor actor do ano.


quarta-feira, julho 09, 2025

COLOSSI DI RODI (1961)

O COLOSSO DE RODES

Um filme de SERGIO LEONE

Com Rory Calhoun, Lea Massari, Georges Marchal, Conrado San Martin, Mabel Karr, etc.

ITA-FRA-ESP / 146 min / COR /
16X9 (2.35:1)


Estreia em ESPANHA a 15/06/1961
Estreia em FRANÇA a 11/8/1961 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 3/9/1962 




O itinerário profissional de Sergio Leone (1929-1989) foi bastante singular. Filho de um realizador e de uma antiga actriz, Leone nasceu no meio do cinema. Mas a partir de 1930 a carreira do seu pai ficou practicamente paralisada e as condições financeiras da família eram muito precárias. Parcialmente por este motivo, além da sua paixão pelo cinema, Leone tornou-se aos 17 anos o mais jovem assistente de realização de Itália. Aos 19, fez parte da equipa de “Ladrões de Bicicletas”, de De Sica. Foi depois sucessivamente assistente de realização, argumentista e director de segunda equipa, o que o levou a colaborar com nomes como Mervyn LeRoy (“Quo Vadis?”), William Wyler (“Ben-Hur”), Robert Wise (“Helen of Troy”), Fred Zinnemann (“The Nun’s Story”), Robert Aldrich (“Sodoma y  Gomorra”), Orson Welles (um filme que não se fez e que acabou por ser “Confidential Report”). Leone dizia que tinha sido o verdadeiro realizador de alguns destes filmes como “Os Últimos Dias de Pompeia”, de Mario Bonnard. Isto deu-lhe uma formação mais variada e mais técnica do que a de muitos realizadores. Lançando-se na realização, Leone não se posiciona de todo como um “artista” e escolhe um dos géneros mais populares de então e menos apreciados pela crítica e pelo público mais sofisticados, o peplum, com “O Colosso de Rodes”.


“Il Colosso di Rodi” marca assim a estreia de Sergio Leone na realização, depois uma carreira de quinze anos como argumentista e colaborador técnico de outros realizadores. Filmado em Totalscope, com nada menos do que oito argumentistas, incluindo Leone, o filme utiliza com grande habilidade os chavões habituais do género. A população de Rodes revolta-se contra os seus governantes, que se refugiam dentro da célebre e gigantesca estátua que dominava o porto. A libertação virá da maneira mais imprevista. Num livro de entrevistas, Leone declarou que quis fazer uma espécie de paródia do género e que ao rever o filme anos depois, este lhe pareceu «nada mau, sobretudo no lado kitsch do vestuário, que acentuava o aspecto de paródia».



CURIOSIDADES:

- “O Colosso de Rodes” passa-se no período que se seguiu à morte de Alexandre, o Grande (323 a.C.), mas antes da ascensão do Império Romano (27 a.C.), conhecido como era helenística. A maioria deste tipo de épicos das décadas de 1950 e 1960 passavam-se na Grécia clássica ou até mesmo antes.

- Diz-se que o verdadeiro Colosso, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, tinha aproximadamente 33 metros de altura. A versão cinematográfica tem 110 metros e suas pernas estendem-se sobre a entrada do porto. A localização real do Colosso original ainda é debatida. A fortaleza na entrada do porto é citada como um possível local, enquanto a Acrópole de Rodes, numa colina com vista para o porto, é citada como outra. Os estudiosos, no entanto, geralmente concordam que representações anedóticas do Colosso sobre o ponto de entrada do porto não têm base histórica ou científica.

- Existem várias versões diferentes, com duração de 126 a 146 minutos. A versão francesa é a mais curta, mas tem algumas cenas mais longas do que as versões em inglês e alemão. O original italiano está disponível numa versão restaurada de 146 minutos, que contém todas as cenas. É esta a versão que aqui se disponibiliza.

segunda-feira, julho 07, 2025

A HARD DAY'S NIGHT (1964)

OS QUATRO CABELEIRAS 
DO APÓS-CALYPSO
Um filme de RICHARD LESTER

Com John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr, Wilfrid Brambell, Norman Rossington, etc.

GB / 87 min / PB / 16X9 (1.75:1)

Estreia no REINO-UNIDO (Londres) a 6/7/1964
Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 11/8/1964 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 11/3/1965 (cinema S. Jorge)



Reporter: «Are you a mod or a rocker?»
Ringo: «No, I'm a mocker»

Em Março de 1965 estava a um mês de completar os meus 12 anos e vivia em Lourenço Marques, Moçambique. Não havia televisão, pelo que os putos dessa altura se divertiam uns com os outros na rua, na praia (que o tempo era quase sempre convidativo) e numa ou noutra ida ao cinema. Sendo filho único, cedo desenvolvi capacidades para também me entreter sózinho em casa, a maioria das vezes rodeado de livros aos quadradinhos e de muitos, muitos discos, pois a música sempre teve uma importância fundamental ao longo da minha vida. A esmagadora maioria desses discos eram na altura de pequeno formato, os chamados 45 rotações, que eu colocava a rodar horas a fio num daqueles gira-discos portáteis, cuja tampa, destacável, era o respectivo altifalante. 

O som que se desprendia daquelas rodelas pretas vinha portanto de uma única direcção - nada cá de colunas sofisticadas, isso era privilégio apenas do meu pai, orgulhoso possuidor de uma aparelhagem último modelo, em verdadeira estereofonia cujo acesso me estava, como não podia deixar de ser, quase sempre proibido. Mas eu queria lá saber daquelas novas tecnologias - o que me interessava mesmo era o portátil vermelho que colocava no chão do meu quarto para poder ouvir toda a música que me encantava: o Cliff Richard e os seus Shadows, a Connie Francis, o Adamo e a Françoise Hardy, a brasileira Celly Campello e, acima de todos, os meus adorados Beatles.

A paixão pelos quatro de Liverpool já era antiga, dois anos inteiros, e tal como a esmagadora maioria dos meus amigos, conhecia todas aquelas canções de cor e salteado, e a cada novo disquinho que aparecia repetia-se sempre a mesma correria às lojas. Coleccionávamos os discos, as letras das canções e todas as fotografias e notícias que encontrávamos dos nossos quatro heróis guedelhudos, recortando-as de jornais e de revistas, e usávamos aquelas magníficas botas “à Beatle” que criaram moda na altura. Isto sem falar da guerra constante com os nossos pais por causa do comprimento dos cabelos que teimávamos em deixar crescer.

Mas, sem televisão, apenas podíamos imaginar como é que eles andavam ou tocavam em cima de um palco. Por isso, quando se anunciou a estreia de “A Hard Day’s Night” foi toda uma ansiedade que tomou conta de mim. Aquele acontecimento único e de uma importância transcendente veio a dar-se no Teatro Manuel Rodrigues (a sala de cinema mais importante da cidade) e foi a loucura total! Devo ter vivido, nesses dias, as horas mais felizes de toda a minha meninice (e é claro que vi o filme por diversas vezes enquanto se manteve em cartaz).

Em muitas outras oportunidades regressei ao filme ao longo da vida, senão com a euforia daquela primeira vez, pelo menos sempre com uma grande e nostálgica saudade daqueles tempos. E são esses tempos fabulosos que efectivamente “A Hard Day’s Night” ainda hoje nos faz lembrar. Feito num estilo quase documental, o filme acompanha os Beatles durante um dia típico na vida do grupo (mais precisamente 36 horas), passado quase sempre a fugir dos fans, com uma série de peripécias pelo meio e sempre, sempre, com muita música à mistura. Hoje, que conhecemos todas as fases da sua fabulosa carreira, desde os princípios dos anos sessenta até ao seu desmembramento no início de 1970, é curioso constatarmos toda a alegria e despreocupação que existiam nesta altura no seio do grupo - eram tempos de puro prazer e  inocência, que nunca mais seriam repetidos na história dos Fab 4 de Liverpool.

“A Hard Day’s Night” é um filme talhado à medida dos Beatles; para eles e sobretudo para todos os milhões de jovens teenagers que na altura da estreia já os idolatravam em todo o mundo (recorde-se que em princípos de 64 é a primeira digressão aos EUA - com a mítica actuação no Ed Sullivan Show - viagem que os catapultou definitivamente para a fama). Ao contrário dos intérpretes da maior parte dos primeiros filmes de rock ‘n’ roll que tinham de vestir a pele de personagens fictícias para tocarem a sua música, os Beatles não tinham necessidade de assumirem qualquer outra encarnação . Existiam pura e simplesmente. Eram apenas eles,  o John, o Paul, o George e o Ringo - jovens que compunham e tocavam grandes canções. Com personalidades diferentes (cada fan tinha sempre o “seu” Beatle preferido) mas todas elas denotando um grande sentido de humor e um charme natural e cativante. Ainda não o sabíamos na altura, mas todos nós estávamos a crescer com eles.

O verdadeiro foco de “A Hard Day’s Night” é portanto o grupo. Existem quatro indivíduos no filme e cada um deles é distinto. John tem a sua perspicácia sarcástica, Paul tem aquele seu bom ar (e um avô irrequieto, “the clean old man”), Ringo tem a sua amada bateria e uma imagem de órfão solitário e George tem a candura que desarma qualquer produtor ou publicitário. Na realidade nenhum dos quatro teve de representar qualquer papel no filme - bastou terem sido iguais a si próprios. E a característica mais comum a todos eles era o “nonsense” (no estilo anarquizante de uns Marx Brothers) com que usualmente driblavam as perguntas idiotas das muitas dezenas de jornalistas ou simples curiosos que constantemente gravitavam em seu redor. Tal como na vida real.

“A Hard Day’s Night” teve uma importância crucial para que o fenómeno, a chamada “Beatlemania”, se alastrasse ainda mais por todo o mundo. E também para a carreira de Richard Lester, que dirigiu o filme. Jonathan Farren escreveu no Ciné-Rock: «Lester joga com o que à época se sabia dos Beatles, ou pelo menos com aquilo que se propalava publicamente através dos media, e com o que se exigia e se aceitava deles. Mas, é incontestável, Lester “apanhou-os”, deu-lhes uma estatura, um modo de estar, um espírito. É a insolência, perdão, o irrespeito, que governa este filme, e sem esse irrespeito, este manjar fino não existiria.»

Curiosamente descrito pela revista Village Voice como “o Citizen Kane dos filmes jukebox”, “A Hard Day’s Night” não mudou o curso da história mas ainda hoje serve na perfeição a memória de todo o entusiasmo duma época - mesmo “datado por causa do seu optimismo ingénuo”, como mais tarde se lhe referiu o próprio Lester. Com uma montagem trepidante e uma belissima cinematografia a preto e branco, o maior trunfo do filme, quer no passado quer ainda agora, na actualidade, continua a ser a excitante música com que os Fab Four entusiasmam sucessivas gerações de admiradores que continuam a descobrir, década após década, o maior grupo de todos os tempos.

CURIOSIDADES:

- A palavra “Beatle” nunca é mencionada no filme

- Todos os figurantes, que passam o filme em loucas correrias e que assistem ao concerto que encerra o filme, são verdadeiros fans dos Beatles

- O filme esteve para se chamar “The Beatles” primeiro, e “Beatlemania” depois. A frase “it’s been a hard day’s night”, proferida por Ringo no fim de um cansativo dia é que deu origem depois ao título definitivo. Nessa mesma noite Lennon e McCartney compuseram o tema que estava pronto a ser apresentado a Dick Lester logo pela manhã.

- O clube de jogo “Le Cercle” é o mesmo que aparece no primeiro filme de James Bond, “Dr. No”. Outra ligação entre os dois filmes é o guitarrista Vic Flick que toca os instrumentais “This Boy (Ringo’s Theme)” e o “The James Bond Theme”


- Richard Lester pode ser visto ao fundo, no palco, enquanto os Beatles interpretam “Tell Me Why”. Na assistência também se encontrava um muito jovem Phil Collins

- Na resposta escrita que John Lennon dá a uma jornalista que lhe pergunta quais os seus passatempos preferidos, a palavra rabiscada é “tits” (“mamas”)

- Pattie Boyd, a futura mulher de George Harrison, aparece em diversas cenas rodadas no comboio (é a loirinha com quem Paul mete conversa)

- Apesar de todos os Beatles terem estado presentes na Gala de Estreia em Londres, nenhum deles ficou no teatro até ao fim da sessão


- George Martin foi nomeado para o Oscar de Hollywood da melhor banda sonora. Curiosamente, Lennon e McCartney não tiveram tal distinção (seriam apenas nomeados para os Grammy Awards). O filme teria ainda outra nomeação, na categoria de Argumento-original. Os quatro Beatles seriam também nomeados para os BAFTA como os mais promissores estreantes em papeis principais.

- Na cena rodada no campo (“Can’t Buy Me Love”), uma das mais célebres do filme, John Lennon não esteve presente por se encontrar a promover o seu recente livro, “John Lennon: In His Own Write”. Foi utilizado um duplo e mais tarde inseridos alguns close-ups de Lennon

- “A Hard Day’s Night” custou a módica quantia de 500 mil dólares mas logo na primeira semana de exibição rendeu 8 milhões, o que o coloca, percentualmente, na lista dos filmes mais lucrativos de sempre.




Pela primeira vez reúne-se num mesmo album todas as doze canções do filme, incluindo também os quatro temas instrumentais interpretados pela Orquestra de George Martin e que só tinham aparecido na edição americana da United Artists (UAS 6366), em 26 de Junho de 1964. Em Inglaterra, o album homónimo (PMC 1230 / PCS 3058), publicado a 10 de Julho de 1964, só continha, na face A, sete temas do filme, uma vez que os outros cinco já tinham sido editados em 1963. Aproveitem portanto esta edição da Rato Records, que vale mesmo a pena.

Por curiosidade reproduz-se de seguida o cartaz e o programa distribuído ao público quando o filme se estreou no cinema S. Jorge, em Lisboa. 

LOBBY CARDS: