domingo, agosto 05, 2012

E MARILYN CRIOU A DEUSA


O organista tocou Over the Rainbow, o caixão saíu da capela e foi colocado na limusina negra, que lentamente virou à esquerda, voltou a virar à esquerda e nem cinquenta metros andou. A urna foi retirada e metida num gavetão, cripta rosa com parede simples e telheiro. As câmaras de filmar, que hoje testemunham imagens cinzentas e fanadas, não largam um homem grande e de queixo frágil, Joe DiMaggio, a lenda do basebol. À volta veem-se poucas vivendas; em 1962, Los Angeles ainda não tinha chegado muito até ali. Como tantos cemitérios americanos, o Westwood Village Memorial Park não era murado. Seis anos depois, Paul Simon e Art Garfunkel fizeram uma canção, Mrs. Robinson, sobre os tempos passados - seria sobre a saudade, se a palavra fosse americana - onde perguntavam: «Para onde foste, Joe DiMaggio? A nossa nação volta o seu olhar solitário para ti...» A pergunta tinha alguma resposta. Três vezes por semana, durante vinte anos, DiMaggio mandaria pôr seis rosas vermelhas no gavetão nº 24 do Corredor da Memória, aquele com uma placa de bronze que dizia simplesmente: «Marilyn Monroe 1926-1962»
Moradia de Marilyn em Brentwood, 5/8/1962
Hoje, o pequeno Westwood Village Memorial Park está cercado de prédios altos; quem falha a entrada no cemitério arrisca-se a cair num parque subterrâneo. Atrás dos vidros há escriturários que nunca devem ter-se esquecido do que disseram em casa e aos amigos no primeiro dia de emprego: «Sabes com quem trabalho, mesmo em frente? Com a Marilyn Nada comparado com a experiência de Richard Poncher. Este empresário morreu aos 81 anos, em 1986, e a mulher pediu aos cangalheiros que fizessem a última vontade ao marido: virar o corpo ao contrário no caixão. Ele ficou no gavetão por cima do de Marilyn. Também Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy, comprou o gavetão ao lado da actriz, para onde irá quando morrer.
(...) Semanas antes de morrer, faz agora meio século, Marilyn Monroe fez exasperar mais uma vez os seus patrões da Fox. Abandonou os estúdios onde deveria estar a filmar "Something's Got To Give", realizado por George Cukor, e foi a Nova Iorque para uma festa. A 19 de Maio de 1962, as luzes das bilheteiras do Madison Square Garden, mítica sala de espectáculos (e lendários combates de boxe), anunciavam: «A melhor coisa hoje é ouvir [hear] JOHN F. KENNEDY e a segunda melhor coisa está aqui [here], MARILYN MONROE.» Era uma sessão de recolha de fundos do Partido Democrata e o anúncio era uma dupla mentira. Naquele dia, a melhor coisa para ouvir era Marilyn e a primeiríssima pessoa que ali estava era Marilyn.
O cunhado do presidente, Peter Lawford, actor de segunda mas sabendo encostar-se (casou-se com uma Kennedy e na vida artística fazia parceria com os talentosos Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr.), era o apresentador do espectáculo no Madison Square Garden. Durante a sessão anunciou várias vezes Marilyn, que não aparecia, num gag a sublinhar o desleixo da actriz, sempre atrasada. Até que ela apareceu, um foco foi buscá-la e o que se seguiu foi um esplendor. Marilyn tinha um vestido longo, cor de carne, pontilhado com cristais e tão justo que ela diria mais tarde ter sido cosido com ela dentro. Costas nuas e a cabeleira platinada, deslizou em pequenos passos de gueixa até ao palco que Lawrence teve o bom senso de deixar só para ela.
Ela levantou os braços e levou as mãos aos olhos, encandeada e frágil como uma corça sabendo-se cercada. O foco não a deixou ver nada e ainda bem que assim foi porque há fotos dessa tribuna presidencial onde não estava Jacqueline Kennedy. As grã-finas, tomando-se de dores pela primeira dama, puseram desprezo na cara pela amante do presidente. Com um dedo, Marilyn deu um piparote no microfone e depois fez o minuto mais sensual da história dos sussurros cantados: «Happy birthday to you, happy birthday, Mr. President...» Tudo arrastado e belo. O presidente só faria anos dez dias depois, uma boa razão para milhões de machos americanos sonharem que, afinal, tivesse sido para cada um deles que Marilyn cantou. John Kennedy agradeceu nessa noite, mentindo: «Já posso reformar-me, depois de me cantarem assim os Parabéns a Você Mas ele não faria nada por ela, nem reformar-se. Nem tão pouco o seu irmão Bob, ministro da Justiça, faria.
(...) Em Agosto de 1962, quando o corpo mais cobiçado do mundo foi para o Westwood Village Memorial Park, não havia lá um só nome famoso. Hoje estão Truman Capote, Karl Malden, Peter 'Columbo' Falk, Gene Kelly, Walter Matthau, Farrah Fawcett, Burt Lancaster, Peggy Lee, Billy Wilder, Jack Lemmon... Dezenas de artistas, como se fossem atraídos pela luz da maior das estrelas. Homenagem a uma vida que pode ser contada entre a campa da Natalie Wood, que esteve no primeiro filme de Marilyn, e o gavetão de Dean Martin, que esteve no último ("Something's Got To Give", projecto abandonado com a morte da actriz). Na cripta do cantor de charme Dean Martin está escrito: «Toda a gente ama alguém alguma vez.» Isso, ou «alguém amada por toda a gente», frase que só no gacetão nº 24 poderia ter ficado gravada.

Ferreira Fernandes in Diário de Notícias, 5/8/2012

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