Um filme de PIER PAOLO PASOLINI
Com Paolo Bonacelli, Giorgio Cataldi, Umberto Paolo Quintavalle, Aldo Valletti, Caterina Boratto, Elsa De Giorgi, Hélène Surgère, Sonia Saviange, etc.
ITÁLIA - FRANÇA / 116 min /
COR / 16X9 (1.85:1)
Estreia em FRANÇA a 22/11/1975
(Festival de Paris)
Estreia em PORTUGAL a 2/9/1976
(Lisboa, cinema Mundial)
The Duke: «We Fascists are the only true anarchists, naturally, once we're masters of the state. In fact, the one true anarchy is that of power»
Se considerarmos que o cinema foi a nova arte do século XX, então, muito provavelmente, este filme foi a obra mais importante que dele emergiu. Porque "Salò" é um filme único, irrepetível. Existe um antes e existe um depois de "Salò" - tudo muda no mais íntimo das nossas convicções, das nossas consciências, depois de vermos "Salò". Filme maldito de um cineasta maldito, o seu dedo acusatório vai muito para além das atrocidades do fascismo italiano - é das arbitrariedades que o poder absoluto engendra que o filme trata. Por isso, por extravasar uma época ou uma ideologia política, por ser comum a todos os sistemas opressivos é que "Salò" incomodou e continua a incomodar tanta gente. Em ligação directa com "Salò" estão a História, a psicanálise, a luta de classes, a relação poder-repressão, as artes, enfim, o próprio cinema e a influência directa sobre as nossas vivências. A partir destas traves-mestras, a introspecção continua, sempre centrada sobre as múltiplas facetas do ser humano, na sua viagem pelo mundo, no seu caminho pela vida até atingir o zénite.
Nesta obra avassaladora estão não só a essência animal do humano e o modo como ele a exterioriza, mas também muitas outras noções filosóficas sobre uma realidade que ele nunca compreendeu, nem nunca aceitou. Na origem dessas noções estão Sade e Freud que emanam determinadas linhas gerais, imediatamente digeridas e transformadas pelo cérebro em brasa de Pasolini. As imagens de "Salò" são o resultado da mistura de tudo o que anarquicamente existia no seu espírito, pouco tempo antes de explodir definitivamente.
Mas recuemos algumas décadas, ao ano de 1975, quando o filme foi feito. Rodado entre 3 de Março e 9 de Maio nos estúdios Cinecittà (com exteriores filmados em Salò, Mantone, em Bolonha), "Salò" foi de imediato proibido em todo o território italiano. Assassinado por um pederasta na noite de 2 de Dezembro, num subúrbio de Roma («morto à paulada, como uma ratazana de esgoto», escreveu Domingos de Mascarenhas no jornal "A Rua"), Pier Paolo Pasolini já não se podia defender.
Aqueles a quem o cineasta metia medo ou incomodava, aqueles que o apelidavam de "panasca", de "inimigo público nº 1", muito felizes festejando o seu desaparecimento (por incrível que possa parecer, houve na altura diversas manifestações públicas, de regozijo pela morte de Pasolini), tinham visto chegar a hora da desforra ao conseguirem a interdição total do filme (os tribunais italianos chegaram a ordenar a destruição do negativo). Tal atentado à liberdade de expressão suscitou de imediato um movimento de solidariedade e uma vaga de indignação, originando que um grande número de realizadores (entre os quais Bernardo Bertolucci, Liliana Cavani, Francesco Rosi, Gillo Pontecorvo), bem como numerosas personalidades italianas no domínio do cinema, das letras e da política se deslocassem a Paris, ao Festival Cinematográfico Internacional, com o objectivo de darem uma conferência de imprensa em defesa do filme, de Pasolini e, sobretudo, em defesa do livre pensamento. Tal intenção não se chegou a concretizar, uma vez que a conferência de imprensa foi de igual modo proibida.
Depois da ante-estreia em Paris, seguiram-se as exaltadas excomunhões e canonizações do filme-testamento de Pasolini. Na maior parte dos países, mesmo naqueles em que a censura fora abolida ou agonizava em estado terminal, proibiram a exibição da obra. Em Portugal, já em 1976, salva a democracia e evitados os extremismos, os distribuidores tremeram com o filme nas mãos e não ousaram estreá-lo sem exame prévio do então ministro da tutela, o socialista, republicano e laico Dr. Almeida Santos (VI Governo Provisório, a seguir ao 25 de Abril). Dizia-se que o futuro Presidente da Assembleia da República não aguentou a visão até ao fim: «Chamem-me censor, chamem-me o que quiserem, mas enquanto eu for ministro isto não passa.» Verdade ou mentira, é certo que não passou. O filme só foi apresentado pela primeira vez no Festival da Figueira da Foz no dia 1 de Setembro de 1976 (e estreado no dia seguinte em Lisboa, no cinema Mundial), já com o I Governo Constitucional em funções, Ramalho Eanes como Presidente eleito e David Mourão-Ferreira como Secretário de Estado.
Na imprensa portuguesa choveram artigos, comunicações, petições, durante as curtas quatro semanas em que o filme esteve em cartaz - pouco público, portanto, para um filme que levantou tamanha celeuma. Logo a seguir à primeira apresentação, na Figueira da Foz, um crítico e historiador soviético diria de "Salò": «Repugnante. Não vejo onde está o anti-fascismo de Pasolini nesta obra». No "Tempo", um cronista agoniado, escrevia: «Não passa de uma obra menor, falsamente política, porcamente sexual, pornográfica no sentido mais porco do termo, o do panegírico de uma nojenta aberração.» Até um crítico mais ou menos conceituado como João Lopes (que ainda hoje se mantém no activo) confessava, «com a máxima humildade e esperando não ofender os espíritos mais dados à coisa pasoliana (sic) que "Salò ou os 120 dias de Sodoma" não me provoca nem os elogios triunfais nem as condenações que têm proliferado. "Salò" deixa-me espreguiçadamente indiferente como qualquer produto dito pornográfico que por aí se exiba.» E continuava: «Como qualquer "Emmanuelle" de primeira ou segunda ordem, também "Salò" se propõe como um longo e monótono desfile de atrações mais ou menos ousadas e escandalosas.»
Já Lauro António, outro crítico importante (para além de cineasta e responsável na altura pela programação de uma sala de cinema, o Apolo 70) ia numa direcção diametralmente oposta: «Pasolini não é somente um dos mais importantes cineastas italianos do pós-guerra, como um dos seus mais belos poetas (...) Em "Salò", Pasolini opta por uma linguagem muito mais despojada, de um rigor quase exemplar, recusando ao espectador tudo aquilo que ele esperaria "fácil", "digestível", mesmo que tal fossem violações e torturas "impensáveis". Em lugar da imagem espectacularmente cruel e violenta, Pasolini descerra perante os olhos do espectador uma análise implacável de um despotismo assente no arbítrio total de quem ascendeu ao domínio da força e do poder.» Enfim, no espectro da crítica portuguesa da época tudo foi dito, extremando-se posições (traduzidas nas estrelinhas atribuídas ao filme, que foram da bola mais negra às 5 estrelas mais resplandescentes).
"Salò" não é, efectivamente, um filme que se possa ver de ânimo leve. Exige uma certa pré-disposição do espectador, uma entrega unilateral e sincera. Não é filme apropriado para espaços colectivos (daí o seu grande fracasso comercial), mesmo espaços de pequena dimensão, requerendo antes um visionamento mais recatado e solitário. E se "Salò" é um filme atroz e terrível, é-o sobretudo pelo que sugere, muito pouco pelo que mostra. Hoje em dia somos bombardeados com cenas de violência explícita, muito mais gráficas, mas que no entanto não conseguem atingir o efeito que este filme exerce na esmagadora maioria dos espectadores. Porque "Salò" não se limita ao rectângulo de um écran; salta cá para fora e entra por nós a dentro, reflectindo a nossa essência mais íntima. Por isso nos incomodam e chocam as suas imagens. Há dentro de nós um mecanismo que, accionado, nos faz reagir repulsivamente. Ao conseguir esse efeito devastador (único e irrepetível), "Salò" demonstra-se de facto como uma obra completa e universal, cuja importância maior é agitar consciências adormecidas. De todos, sem excepção, quer se tratem de vítimas ou de carrascos.
Temido e censurado sobretudo pelas classes políticas, do que se fala em "Salò" é, como acima já se referiu, das arbitrariedades usadas pelo poder absoluto, qualquer que seja a época, a ideologia ou o sistema político vigente. Até nas sociedades consumistas dos nossos dias, ditas democráticas, existe a tentação de deitar mão a essas arbitrariedades por parte dos que se sentam nas cadeiras do poder. E é na dualidade de posições que normalmente se tomam perante o filme - moralistas ou políticas - que reside o seu maior encanto. Ninguém lhe consegue ficar indiferente. Mas "Salò" é, além do mais, um discurso sobre a impotência de uma classe dominante, opressiva e decadente. A busca incessante de uma erecção que não surge, o refúgio na história erótica que se conta, a procura do orgasmo já impossível, são bem os exemplos da impotência dos senhores absolutos, tentando, in extremis, um sopro de vida que alimente os seus últimos momentos de poder e dominação.
Em "Salò" a alegria do acto amoroso nunca transparece nos rostos dos torcionários. Porque o prazer só é possível em liberdade, em aceitação mútua, mesmo quando o que se aceita é a violência, a dor, ou mesmo a morte. Entretanto, um elemento novo vai-os desafiando ao longo da sua encenação macabra. Algo vai nascendo nos bastidores da noite, entre as paredes nuas de um quarto-cela, numa fuga evidente e subversiva. Começam a romper-se os cânones impostos pelos senhores. Um rapaz que foge, uma servidora que se suicida, um outro que faz amor com uma mulher negra, duas raparigas que se acariciam na mesma cama. É a real demonstração do princípio de onde quer que haja opressão há necessariamente resistência. Tanto num suicídio que infringe uma regra, como num punho erguido contra a tirania. Esta imagem do jovem que sabe não ter escapatória à iminência da morte e que mesmo assim levanta o punho fechado em desafio aos seus algozes, é um plano lindissimo, que se tornou num ícone desta derradeira obra de Pasolini.
Mas não é o único. Lembro por exemplo a serviçal negra assassinada (com a cabeça docemente deitada na cadeira) ou ainda o plano-sequência que conduz a pianista ao suicídio, entre outros. Na verdade, "Salò", estética e plasticamente, é um filme muito belo, apesar da crueza de certas imagens. Além disso, o rigor com que a construção dramática do filme nos é apresentada é apanágio de uma narrativa clássica, conferindo ao filme um certo carácter de tragédia. Esse sentido trágico é aqui resultante da permanente tensão entre a beleza da narrativa e a repulsa do espectador, o que talvez explique a relação amor-ódio que muita gente nutre pelo filme. Nesse sentido, “Salò” é sem dúvida uma obra shakespeariana por excelência.
Pier Paolo Pasolini morreu poucos meses depois de ter completado a montagem de "Salò". Tinha 53 anos e algum tempo antes afirmara publicamente que se sentia destruído e que nada lhe restava senão isso mesmo. Pasolini ficará na história do cinema pelo seu não conformismo, pela sua luta contra as estruturas pré-estabelecidas. A sua mensagem não foi compreendida, enquanto ele, desesperadamente, o tentou. Mas tudo o que então era obscuro e pouco definido tornou-se hoje mais claro. A morte eternizou o seu nome, a sua obra e a sua angustiosa conclusão sobre a realidade. Sobre a decadência dessa realidade, sobre a sua podridão. "Salò" foi o seu último gesto de grande coragem, dissipou as dúvidas existentes e deu vida, finalmente, àquilo que estava moribundo. Pasolini morreu. Mas a sua obra fica, para sempre. E com ela a sua mensagem viverá eternamente dentro de nós.
Deixo-vos agora com parte do comentário que o sempre lúcido e criterioso João Bénard da Costa escreveu sobre o filme em 1996, vinte anos depois da sua estreia: "Salò", o filme “indigerível e inconsumível”, para usar adjectivos aplicados por Blanchot à novela de Sade que lhe serviu de base, acabou por ter uma posteridade académica com lugar firme entre os clássicos do cinema. É verdade que as obras completas de Sade também já figuram na Pleiade em papel-bíblia. Mas se Sade teve de esperar duzentos anos (1790-1990) por tal consagração, Pasolini não precisou sequer de vinte. Barthes chamou «segunda morte de Sade» aos cerca de cento e cinquenta anos em que “Les 120 Journées de Sodome” apenas circulou em manuscrito (como, de resto, quase toda a obra do “Divino Marquês”) entre raríssimos marginais. Pasolini não morreu segunda vez. Mas terá ressuscitado? Quem são os seus herdeiros? Quem o segue? Porém, é tempo de deixar o futuro, de deixar o presente e de voltar ao passado.
Há vinte anos, pediram-me para escrever o texto que no Festival da Figueira apresentou o filme. Ainda hoje estou para saber porque é que essa prosa fez mais pela minha reputação do que tudo quanto escrevera antes dela, noutros vinte anos de “exercício crítico” que na altura já levava. Devo a Pasolini uma decisiva viragem na minha ”carreira”. Se não fosse ele, talvez hoje não estivesse aqui. Tanto quanto me lembro, não o devo sobretudo a ele mas a um nome que só mesmo eu lhe podia ter associado: Wolfgang Amadeus Mozart. Há vinte anos, por qualquer razão que agora não é razão, dediquei-me durante meses a ouvir, por ordem cronológica, quase toda a obra de Mozart, com as raras excepções do que então ainda não estava editado. Com Mozart tinha já vivido outros vinte anos (pelo menos) mas nunca, como em 1976, o estudei com tanta atenção, tanto vagar, tanta discografia comparada e tanta bibliografia. Tinha concluído essa fase, quando fui até ao S. Jorge ver "Salõ", em sessão privada para preparar o texto. Conhecia o livro de Sade, conhecia as reacções ao filme, conhecia um famoso texto de Barthes que acusava Pasolini de ter querido dar figura ao que não era figurável, pois que os fantasmas que a leitura de Sade convoca a visão os suprime ou mesmo os bloqueia, ia mental e fisicamente preparado para as “cenas eventualmente chocantes”.
Mas quando comecei a ver o filme, se eventualmente me choquei, foi num sentido muito diverso ao esperado. As primeiras imagens nada têm do rumor e fúria que a publicidade faria esperar. Tudo começa com um muito branco e doce genérico, sem imagens e com grandes margens vazias. Depois, passa-se para a doce paisagem de Salò, a capital dos últimos meses de Mussolini, para onde Pasolini transpôs a acção que, no livro, se situa no Castelo de Silling, na Floresta Negra. Salò, pelo menos Salò tal como o filme o dá a ver (nunca lá estive) nada tem do lugar ermo e inacessível de Sade, tão ermo e tão inacessível «que era preciso ser ave ou diabo para dali se poder sair ou entrar». Nos primeiros parágrafos de Sade já estamos no inferno ou no que no céu de inferno exista. Nos primeiros planos de Pasolini, estamos nos antípodas dele, muito postos em sossego. As pessoas tratam--se pelo nome nas ruas e a luz é das “jeunes files en fleur” que a banda sonora pouco depois evoca. Segue-se a maquinação dos quatros poderosos - os “encenadores” das 120 Jornadas.
Em Sade, há um duque, um bispo, um juiz e um banqueiro. Em Pasolini, o banqueiro é substituído por um político. Os quatro personagens conversam na penumbra, numa obscuridade que contrasta brutamente com a luz anterior e com a luz que vem lá de fora e que entra pela janela aberta. Formam uma espécie de mancha, mas que é atenuada pelo discurso arcaico ou culturalista que mantêm (exprimem-se em italiano do século XVII e citam Proust, Barthes e Marx), E, quando se referem aos casamentos incestuosos que vão organizar, dizem, mais ou menos e em calão marxista, que «aquela gente» (a gente de Salò, que antes vimos) «não sabe que a burguesia nunca hesitou em devorar os próprios filhos.» De facto, aquela gente não sabia. E, quando começa a caça às vítimas, são enquadramentos, rápidos diálogos ou outros efeitos de banda sonora que nos dão um pouco do que as une e do que as une aos outros, os que não foram escolhidos, os que nunca serão enviados para a casa das orgias. Há breves alusões à resistência e trocam-se palavras tão simples como «adeus», «coragem» ou «boa sorte».
Quando finalmente a violência irrompe (o rapaz que tenta fugir, salta do carro e é abatido a tiro) sente-se o sobressalto do gratuito. Mas se era um aviso, como aviso passou. E dele nos esquecemos - ou eu me esqueci - quando se passa para a casa onde vão ter lugar as jornadas. Ao contrário de Sade, nada há de aparentemente lúgubre nessa mansão muito século XIX, em que dispostos aos cantos dos planos, os criados parecem impassíveis espectadores de uma possível (ou impossível?) harmonia entre carrascos e vítimas. E só algum tempo mais tarde começam as estações, que no filme se chamam círculos, termo que vem do Inferno de Dante e não de Sade. O que eu vi há vinte anos e o que eu continuei a ver, é uma ruptura, que todo o filme manterá, não só com o texto de Sade, mas com o nosso fantasma dele. Foi aí que me lembrei de Mozart. Mais concretamente, lembrei--me de “As Bodas de Fígaro”. Muito mais concretamente, da cavatina Porgi, Amor, que Rosina, Condessa d'Almaviva, canta no início do II Acto da ópera.
Pareceu-me que a ruptura de Pasolini com o texto de Sade era equivalente à ruptura de Mozart com o texto de Beaumarchais e com as convenções da opera-buffa que ainda dominam o I Acto de “As Bodas”. Fui mais longe: pareceu-me ver nas escabrosas sequências das orgias a mesma invocação ao amor como morte e a mesma distância do amor como alegria que a Condessa de “As Bodas” - antiga Rosina de “O Barbeiro de Sevilha” - exprime na ária que a isola em grande plano, tão, tão diferente da namoradeira sevilhana para quem o sexo era instinto de vida. A Condessa, como Pasolini, ou como a jovem Sofia de “Salò” - essa a quem matam a mãe e que, depois, surpreendem com uma amiga na cama - já só vê no sexo uma “decepção suicidária”. Como a quarta narradora do filme, transposta por Pasolini para a função de intérprete-pianista, o que ela vê impede qualquer participação e comanda-lhe os acentos lunares, frios e céleres, como lunar, frio e célere é o olhar de Pasolini. Sob os quiproquós e as trocas de casais da opera-buffa, como sob a alegada obscenidade de “Salò”, o que emerge, em surdina, é o ecrã de uma outra realidade em que cada pessoa está sózinha com os seus desejos mais inconfessáveis e com a sua fome de amor mais insaciável.
Para usar uma expressão, roubada por um comentador de Mozart a Valéry, o que subjaz, na ópera como no filme, é «une sombre soif de limpidité». Vemo-la, em “Salò”, em todos os actos de amor proibido que são, por força das regras, todos os que se fazem fora do teatro das orgias. Vemo-la, em “Salò”, nas muitas mortes de todos os que são surpreendidos amando-se clandestinamente. Vemo-la, em “Salò”, menos no horror dos círculos dantescos do que nas terríveis razões e meios de que as pessoas se servem para se protegerem desse horror. Vemo-la, em “Salò”, em todos os lugares em que o amor não está, em todos os lugares em que, servindo-nos dos gestos do amor, de não-amor somos feitos. “Salò” não é “cinema-prosa” nem é “cinema-poesia”, para retomar uma distinção tão cara a Pasolini. “Salò” é, na dupla acepção da palavra, cinema escatológico. Ou seja, simultaneamente cinema excrementício - esperma, sangue, merda, lágrimas - e cinema do que há-de acontecer nos fins do Homem e do mundo. Expressão do extremo, expressão do último. Inferno e parúsia. Em linguagem de Pasolini, «ou ser-se mortal e inexpresso, ou exprimirmo-nos e morrer».
- Pasolini tinha decidido filmar uma trilogia sobre a morte, de que “Salò” foi a primeira parte. Devido à morte do realizador o projecto não chegou ao fim
- Os “excrementos” usados nas cenas de coprofagia eram uma mistura de chocolate e marmelada de laranja
- Ennio Morricone, que compôs a música, confessou mais tarde ter-se sentido incomodado ao visionar o filme acabado. Tal como a grande maioria dos actores, que se divertiram imenso durante as filmagens, não imaginando como ficaria o filme no final. O que só prova ter sido a montagem uma das grandes virtudes de “Salò”
- A versão original do filme, usada apenas na ante-estreia em Paris, tinha mais cerca de meia-hora. Essa metragem nunca mais foi reposta em qualquer apresentação pública ou edição em vídeo.
6 comentários:
Mais um post 5 estrelas sobre o filme mais "doloroso" de se ver de sempre.
Também o vi na estreia, em 1976, mas confesso que nunca mais tive vontade de a ele regressar. No entanto, é como dizes, há cenas nele que não se esquecem por mais anos que passem.
Gosto muito de Pasolini, mas SALÓ me sufoca, me angustia, me deixa realmente incomodado.
O Falcão Maltês
Não vi e confesso que tenho uma certa alergia a alguns dos chamados génios do cinema, entre eles Pasolini claro.
Há quem lhe chame isso, Elisabete, mas pessoalmente não considero que Pasolini tenha sido qualquer "génio". Aliás, em cinema, existem muito poucos cineastas que se possam considerar que tenham sido tocados por essa tal de "genialidade". Talvez Griffith, Chaplin, Eisenstein..., e mais alguns outros, mas na verdade o que havia (hoje em dia é como procurar uma agulha num palheiro) eram grandes e inovadores cineastas, capazes de nos darem obras inesquecíveis (como este "Salò") cuja modernidade se mantém ao longo do tempo.
Já não vejo este filme há muitos anos. Está na hora de revê-lo, apesar de muito polémico e muito violento.
Se a ideia de Pasolini era fazer uma trilogia e "Saló" era a primeira parte imagine-se como seriam as outras duas sequelas!!
Boa Tarde Rato,
Cheguei a seu blog e gostei bastante, tanto que o relacionei aos blogs favoritos do 'O Teatro Da Voda', meu blog.
Esse filme também comentamos no nosso blog, na seção '1001 Filmes', sendo o décimo filme assistido da seção, que hoje conta com 63 críticas.
Gostaríamos de convidá-lo a nos visitar, e se puder e quiser, contribuir com o blog com críticas, sugestões, discussões, etc.
http://oteatrodavida.blogspot.com
Abraços,
Jonathan Pereira
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