quinta-feira, janeiro 23, 2014

DIE MARQUISE VON O... (1976)

A MARQUESA DE O
Um Filme de ERIC ROHMER



Com Edith Clever, Bruno Ganz, Edda Seippel, Peter Lühr, Otto Sander, etc.

RFA-FRANÇA / 102 min / COR /
4X3 (1.37:1)

Estreia em FRANÇA a 19/5/1976
Estreia nos EUA a 17/10/1976
(Festival de New York)
Estreia em PORTUGAL em Abril de 1977
(Lisboa, cinemas Quarteto e Estúdio 444)



«Rejuvenescer uma obra não é modernizá-la, 
é restituí-la ao seu tempo»
Eric Rohmer

A obra, aqui, é a de Heinrich Von Kleist, um homem conotado com o realismo alemão. Já não é clássico, ainda não é romântico; mas foi um inovador, um revolucionário, e também um poeta em crise. A propósito dele falaria Goethe, seu contemporâneo, na “confusão de sentimentos”. Na verdade, seria essa mesma confusão que iria dominar a sua obra e a sua vida. Porque para Kleist os sentimentos não se explicam, os sentimentos exprimem-se, manifestam-se, exteriorizam-se mas não se justificam. Normalmente eles nada têm a ver com a realidade, mas a razão está sempre neles. Homem de uma época de transição, Kleist pressente que uma transformação se está a dar e que a verdade está não no que se vê, no que se diz, mas no que as pessoas sentem. E só através dessa verdade que está no interior de cada um, é que se pode atingir a redenção.


Neste sublime “A Marquesa de O” (Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes), toda a força da heroína está na sua honestidade, na convicção da sua inocência. Contra a lógica, contra todas as aparências, contra a pressão de todas as convenções. Essa profunda integridade moral de Julietta (Edith Clever) traduz-se na própria pujança física, que dela emana e que a transforma numa força viva (duplamente viva, dado o seu estado de gravidez) que contém uma razão, uma certeza, uma firmeza moral que se conseguem sobrepôr à mesquinhez débil da realidade ou às inexplicáveis situações que aparentemente negam a grandeza da sua alma.

Não interessa ao desenrolar da narrativa a história, o fait divers – uma nobre viúva encontra-se com todos os sintomas de uma gravidez sem saber como, e coloca um anúncio no jornal («a marquesa de O…, senhora  de excelente reputação, viúva, mãe de duas crianças com uma perfeita educação, faz saber que ficou grávida sem seu conhecimento; e que o pai da criança que vai dar à luz se deverá apresentar. Por razões de natureza familiar, encontra-se na disposição de com ele casar»). Recuamos uns meses. Vemos como no meio de um bombardeamento a marquesa adormece sob a acção de um soporífero, para apaziguar os nervos despedaçados pelos terríveis acontecimentos que se desenrolam à sua volta, ameaçando-a a ela e à sua família.

E vemos o jovem conde (Bruno Ganz, aqui com 35 anos, ainda nos inícios de uma brilhante carreira no cinema), todo de branco, como um anjo, salvá-la de um estupro quase certo para depois fazer a sua aparição na inocência daquele sono (um plano magnífico, que consegue sobrepôr-se à memória de todo o filme, e que se inspirou directamente no quadro “O Pesadelo”, de Henry Fuseli). Vemos e acreditamos – a história está contada. Mas é a partir daí que o romance de Kleist começa verdadeiramente. Ultrapassado o insólito episódio, começa o desenrolar dos aspectos sociais e psicológicos do caso.

Assim, a verdade aqui é a inocência da marquesa. Que para nós é evidente, visto que a testemunhámos, e que para ela não pode deixar de o ser, por razões óbvias. Mas tal evidência não aparece aos olhos de todos quantos a rodeiam. Para os pais (Peter Lühr e Edda Seippel) tudo não passa de uma farsa. Sentindo-se traídos na sua honra e amor-próprio, expulsam a impura do seio familiar, tentando ao mesmo tempo, mas em vão, retirar-lhe as duas filhas. Para o médico e para a parteira trata-se apenas de mais um caso que nada tem de especial - «tirando a Virgem Santissima, isso não aconteceu a nenhuma mulher no mundo; é bem evidente que a senhora marquesa tem as suas culpas, mas não é caso para desgraças. Afinal desgraça é morte de gente e aqui é uma nova vida que vem ao mundo».

Mas a heroína de Kleist recusa toda e qualquer mácula. Ela sabe-se inocente. Não aceita o drama dos pais nem a complacência discreta da parteira – ela apenas quer afirmar a sua verdade, a única que para ela tem um significado. Perante uma tal pureza de sentimentos, perante uma tal verdade interior, o autor tem apenas uma certeza: a de que não é por palavras, por metáforas ou por interpretações que ele vai dar razão à sua personagem, que ele vai provar a sua inocência. Para atingir tal objectivo ele só tem uma arma: a tradução no rosto e nos gestos de um estado de alma. E só uma tal pureza interior pode ter as manifestações exteriores a que assistimos na obra de Kleist. E a que assistimos no filme de Rohmer. Porque Rohmer compreendeu que só criando uma relação directa entre a história que narra e a época em que ela se desenrola podia manter a fidelidade à obra original.

Por isso Rohmer se apropria do romance de Kleist como se de um argumento se tratasse. Nele já se encontravam não só os diálogos, mas todas as indicações de como agiam e sentiam as personagens. Porque só estando dentro da época se podia compreender que uma tal situação conduzisse a todas aquelas emoções, cuja expressividade particular - um pudor a ocultar uma explosão interna dos sentimentos -  nos poderia parecer hoje excessiva e pouco realista. A preocupação de Rohmer é por isso dar-nos uma época; mas acima disso, é dar-nos o espírito de uma época. Uma época em que os preconceitos sociais, sobretudo em relação às mulheres, eram o pão de cada dia e onde os direitos e deveres eram impostos de acordo com as conveniências dos que detinham uma posição sócio-económica de elite.

Kleist e Rohmer têm perante este caso um mesmo pudor. Ambos nos transmitem os sinais exteriores de um estado de alma. Mas esses sinais são tão fortes que o traduzem muito mais do que se tivessem proposto analisá-lo ou dissecá-lo. A objectividade com que a situação é encarada é assim um disfarce da subjectividade com que ela é sentida. Um autor só se limita a relatar assim uma realidade quando ela é tão forte e lhe diz tanto respeito que o pudor o impede de lhe tocar, de a deturpar.

Rohmer tem toda a razão – respeitar um texto, palavra a palavra, e restituí-lo à sua época, é fazer dele um texto de hoje, um texto de todos os tempos. E basta ter a coragem de o fazer, basta ter essa intuição de que a verdade está no interior e que surge quando aprendemos a ver, basta ter essa objectividade de quem sente demasiado e lhe repugna o recurso ao subjectivo, para fazer um filme assim, belo e intemporal, como é “A Marquesa de O”.



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