segunda-feira, agosto 18, 2025

VERTIGO (1958)

A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES
Um filme de ALFRED HITCHCOCK



Com James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Tom Helmore, Henry Jones, Raymond Bailey, Ellen Corby, etc.


EUA / 128 min / COR / 16X9 (1.85:1)


Estreia nos EUA (L.A.) a 9/5/1958
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 13/1/1959 (cinema Monumental)




Scottie: «Anyone could become obsessed with the past 
with a background like that


“Vertigo” é, para muitos, entre os quais me incluo, a obra-prima de Hitchcock, «um dos quatro ou cinco mais complexos, mais profundos e mais belos filmes que o cinema já nos deu» (Robin Wood). Complexidade e profundidade, disse. Mas, como em todas essas grandes obras, essas características não são contraditórias com uma simplicidade extrema que quase poderia fazer resumir o argumento na seguinte frase: «Esta é a história que começa com a morte de um polícia e acaba com um polícia a matar». Após o genérico (e já lá vamos) vemos uma barra horizontal destacando-se de uma massa indefinida. Plano fixo durante alguns segundos. Depois, duas mãos agarram a barra e a objectiva foca a cidade, a noite e as alturas. As mãos eram de um perseguido, em fuga a dois polícias: um fardado, outro à paisana. Tentando salvar o segundo que escorrega e se desequilibra num telhado dominando uma imensa altura, o primeiro cai e morre. E vemos o paisano (James Stewart), suspenso do abismo, agarrado a uma chapa de metal que lentamente se desconjunta. Parece impossível que se possa salvar. 




Corte súbito e vamos encontrá-lo no apartamento de Midges (Barbara Bel Geddes), envolvido num colete de gesso. A elipse é das mais misteriosas, porque nunca sabemos como se salvou Stewart da morte. De certo modo, ele é o primeiro a voltar “de entre os mortos” (título da novela que serviu de base ao filme) e a sua sobrevivência pertence à ordem do onírico. Tudo se passou como num sonho, como no acordar do pesadelo clássico em que sonhamos que vamos a cair. No fim do filme, James Stewart volta a estar suspenso sobre o abismo, sem sabermos se irá cair ou se novamente enlouquecerá, repetindo, ele agora, a história de Carlota Valdes, passando o resto dos seus dias a perguntar «Where is my Madeleine? Have you seen my Madeleine?». Como nota Robin Wood, numa magistral análise do filme, esse impossível salvamento inicial implica que James Stewart fique, ao longo de todo o filme, “metaforicamente suspenso sobre o grande abismo”. 



Na vertigem, que o levará a ser escolhido pelo seu antigo companheiro Gavin Elster, que o levará a ser chamado, que o levará a perder-se e a perder. James Stewart quem é? “Johnny” ou “Johnny O” para Midges, “John” para Madeleine, “Scottie” para Judy, “Ferguson” para a polícia, é um homem que vive e morre várias vezes (a queda inicial, a loucura depois da morte de Madeleine, o final) é um homem duplo ou triplo. Johnny O acaba quando a personagem Midges (que se identifica à mãe e lhe diz, no hospital, «mother is here») desaparece do filme, numa das suas sequência mais misteriosas, ao fundo dum corredor, na mesma situação que Madeleine descrevera no seu sonho («I walked down in a long corridor. In the end of the corridor, nothing but darkness and I was into the dark»). John acaba com a morte de Madeleine que preferira esse nome ao de John Ferguson «good, strong name». Scottie, o nome escolhido por Judy, acaba quando o polícia Ferguson descobre (plano do colar) que fora enganado e Judy era Madeleine (ou Madeleine era Judy). E é o polícia quem subsiste no final (como no início) para desmascarando o crime, se curar da vertigem («I made it») e se perder por essa descoberta.


Como escreveu Luís Noronha da Costa, «Scottie é na verdade ‘morto’ pelo seu duplo (ele mesmo) o polícia John Ferguson (...) esse ‘Scottie’ que, pequeno polícia de S. Francisco, se arvora em Criador e perde». Criador de quê? Volto à sequência no quarto de Midges, com a referência aos soutiens e uma alusiva referência à impotência de Stewart. Aí («I look up, I look down», visão alternada que define a personagem) volta esta a conhecer a pequena vertigem de um pequeno amor por uma pequena mulher (para ele, já que o imenso e misterioso estatuto de Barbara Bel Geddes, cujo enigma se acresce a cada visão do filme, ficará supremamente ilustrado na sequência em que se autorretrata como Carlota Valdes e no seu já citado desaparecimento do filme). Ao som de Mozart (que voltará com a mesma peça - o andante da Sinfonia nº 34 - na clínica) Stewart, o homem que veio da morte, revelará a sua inadequação ao uterino e protector universo de Midges.




Depois, é o encontro com Elster, fundamental sequência, com uma prodigiosa découpage, em que tanto se fala e onde tanto emergem as palavras freedom e power. Por elas, mais do que pela crença na narrativa de Elster, Stewart voltará a ser polícia, wandering atrás da wanderer Madeleine, a mulher dos cabelos em espiral (encadeando assim a sua imagem com a espiral do genérico e com a construção em espiral de todo o filme) possuída pela morta Carlota Valdes. Durante muito tempo (John atrás de Madeleine) cessam os diálogos e vamos visitando lugares de passado e morte: capela-cemitério do séc. XVIII, hotel antigo, flores para os mortos, museu. Quem é aquela mulher? A imagem que víramos no genérico, sem que a ampliação nos deixasse perceber se se tratava de Madeleine, de Judy, de Carlota ou das três, imagem da mulher e da morte, sem identidade possível?


Alguém que sabe que vai morrer e que se opõe à Sequóia Sempreviva, «always green, ever living» (na mais bela sequência do filme e, porventura, de toda a obra de Hitch), não mais mulher de Gavin Elster («she is no longer my wife», diz este), Ofélia nas águas da ponte de S. Francisco, Isolda guardada por misterioso filtro para um Tristão que não chegará (o tema da música de Herrmann copia o tema do “Tristão e Isolda”), Eurídice buscada aos infernos pelo Orfeu que quis saber demais? Mulher salva e perdida pelo unexpected amor (entre o Livery Stable e o Living Table) cuja morte deixa de novo Stewart no vazio e na vertigem (e a nós com ele, que de tanto nos identificarmos ao protagonista, perdemos nessa morte a razão do filme)?




Madeleine ressuscita como Judy? Sim e não. O que há de mais extraordinário nessa “segunda parte” do filme e, sobretudo a partir do momento em que pela genial modificação do romance feita por Hitchcock, o espectador sabe mais do que Stewart (perdendo assim “o chão” da sua identificação com ele) é que, através das sucessivas metamorfoses, Judy jamais é Madeleine. Não o é quando assume o estatuto de mulher vulgar, vulgarmente respondendo à angústia de Stewart, não o é quando escreve a carta reveladora («I made the mistake; I fell in love. But that wasn’t part of the plan. I’m still in love with you and I want you so to love me. If I have the nerve I’d stay and lie, hoping I could make you love me again - as I am, for myself - and so forget the other, forget the past. But I don’t know whether I have the nerve to try») porque Madeleine jamais mentira, jamais quisera esquecer o passado, jamais quisera ser amada por si própria; não o é quando Stewart a veste e penteia, e se recusa àquela realização-encenação, no momento em que volta a ouvir-se a música do genérico. 


Mas também não o é quando a vemos, vinda do escuro e do corredor, vestida como Madeleine, nem no celebradíssimo plano (iluminado como o do cemitério) em que sai da casa de banho igual a Madeleine. «Não é só uma mulher mais vulgar do que Madeleine. É sobretudo uma perca na Criação.» (Luís Noronha da Costa). Por isso nunca acreditamos (mau grado a evidência dos documentos de identidade e a descoberta dum passado louche como amante venal de Gavin Elster) que tudo tenha sido ao contrário, ou seja que Judy tenha existido sempre e que Madeleine fosse uma ilusão. Ela pode acreditar nessa história (donde o seu lapso significativo com o colar) mas nem nós nem Stewart acreditamos nisso.




Aquela mulher da segunda viagem de carro à Missão, com as mesmas árvores vistas do automóvel, em contraplongé, não é a da primeira viagem. Por isso, Stewart lhe dirá no final: «I loved you so, Madeleine» voltando a trocar a identidade, no preciso momento em que o fantasma-freira dita a segunda morte de Madeleine, perfazendo a estrutura onírica (o máximo do surreal) e deixando-nos a nós tão suspensos quanto o protagonista. De nada vale ao homem entrar no inferno (como Orfeu) se as leis do aquém (o mundo policial nosso e de Ferguson) se sobrepõem ao mistério total. Quando assim acontece, cessa a aparição. E ficamos, de novo, na vertigem. Do sonho, da loucura, do inexplicável total. Que pode o mundo das Sequóias Semprevivas, das raízes, da duração e do tempo, contra o mundo das aparições, do mar do primeiro beijo, das imagens, do que sempre escapa, escorre e flúi? Que pode Judy contra Madeleine, ou Madeleine contra Carlota Valdes? Que pode o real contra o cinema? Vertigo, apenas. (João Bénard da Costa)



CURIOSIDADES:

Sir Alfred Hitchcock queria originalmente usar seu famoso "zoom Vertigo" já em "Rebecca" (1940), mas devido à falta de tecnologia na época, não conseguiu. A técnica foi inspirada em uma ocasião em que Hitchcock desmaiou durante uma festa.

Este filme ficou indisponível por três décadas porque seus direitos (juntamente com outros quatro filmes do mesmo período) foram recomprados por Sir Alfred Hitchcock e deixados como parte de seu legado para sua filha Patricia Hitchcock . Eles são conhecidos há muito tempo como os "Cinco Hitchcocks Perdidos" entre os cinéfilos e foram relançados nos cinemas por volta de 1984, após uma ausência de aproximadamente trinta anos. Os outros são "O Homem Que Sabia Demais" (1956), "Janela Indiscreta" (1954), "A Corda" (1948) e "O Terceiro Tiro" (1955).

Sir Alfred Hitchcock descreveu este filme para François Truffaut assim: «Para simplificar, o homem quer ir para a cama com uma mulher que está morta.»

O Empire Hotel onde James Stewart finalmente encontra Kim Novak é o Hotel Vertigo (antigo York), localizado na Rua Sutter, 940, em Lower Nob Hill, São Francisco. A personagem Judy morava no quarto 501, que ainda preserva muitos dos aspectos capturados neste filme. Em 2023, o Hotel Vertigo encontrava-se fechado, mas reabriu dois anos depois como Hotel Julian. O restaurante do hotel chama-se Carlotta's.

Sir Alfred Hitchcock ficou ressentido com o fracasso da crítica e do público deste filme em 1958. Atribuíiu a culpa a James Stewart, por "parecer velho demais" para atrair o público. Hitchcock nunca mais trabalhou com Stewart, que antes era um dos seus colaboradores favoritos.

Quando Kim Novak questionou Sir Alfred Hitchcock sobre sua motivação numa cena específica, Hitchcock teria respondido: «Não vamos nos aprofundar muito nessas questões, Kim. É só um filme».




A figurinista Edith Head e o director Sir Alfred Hitchcock trabalharam juntos para dar às roupas de Madeleine uma aparência sinistra. O fato cinza foi escolhido pela cor, pois acharam estranho uma mulher loira usar tudo cinza. Além disso, adicionaram o cachecol preto ao seu casaco branco devido ao contraste peculiar. Mas quando Kim Novak se apresentou para as filmagens, segundo Hitchcock, ela tinha "todo tipo de ideia preconcebida" sobre sua personagem, incluindo o que usaria ou não. Antes do início das filmagens, ela referiu que não gostava do fato cinza e dos sapatos pretos que deveria usar, achando-os pesados e rígidos demais para a sua personagem. Novak mais tarde lembrou: «Eu não achava que ele se importaria com o tipo de sapato que eu usasse. Nunca tive um director que fosse exigente com os figurinos, a forma como eram desenhados, as cores específicas. As duas coisas que ele mais queria eram aqueles sapatos e aquele fato cinza.» Hitchcock explicou a Novak que o aspecto visual do filme era ainda mais importante para ele do que a história, e insistiu que ela usasse o fato e os sapatos que ele vinha planejando há vários meses.

Há uma diferença de idade de 25 anos entre James Stewart e Kim Nova, que tinham 49 e 24 anos, respectivamente, quando o filme foi filmado em 1957.

É sabido que Hitchcock detestava filmar ao ar livre e frequentemente gastava quantias exorbitantes em cenários de estúdio para imitar exteriores (por exemplo, um pátio inteiro de apartamentos em "Janela Indiscreta"). Ele mandou recriar uma réplica exacta da entrada do restaurante Ernie's num estúdio de som. O cenário caro e altamente detalhado foi usado em duas tomadas rápidas, totalizando apenas 15 segundos de filme.

A fonte original deste filme foi o romance francês "D'entre les Morts", e a acção passava-se em Paris. Sir Alfred Hitchcock mudou o cenário para São Francisco, cidade conhecida pela sua topografia única e paisagem montanhosa, a fim de adicionar ainda mais tormento à vida de Scottie e enfatizar a natureza debilitante de sua vertigem e acrofobia.

Em 2012, este filme substituiu "O Mundo a Seus Pés" (1941), de Orson Welles, na votação da crítica especializada Sight & Sound para o melhor filme de todos os tempos, onde se manteve durante 10 anos. 

Hitchcock costumava jantar no Ernie's sempre que visitava São Francisco e gostava tanto de lá comer que contratou o maître e o barman do restaurante para aparecerem em "Vertigo". Eles foram levados de avião para Hollywood para filmar no set do Ernie's.

- "Vertigo" teve duas nomeações para os Óscares, nas categorias de Direcção Artística/Cenários e no Som.

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