terça-feira, junho 17, 2025

DEAD RINGERS (1988)

IRMÃOS INSEPARÁVEIS
Um filme de DAVID CRONENBERG

 

Com Jeremy Irons, Geneviève Bujold, Heidi Von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas, Stephen Lack, etc.

 

EUA-CANADÁ / 116 m / COR / 
16x9 (1.85:1)

 

Estreia no Canadá (Festival de Toronto) a 8/9/1988
Estreia nos EUA a 23/9/1988
Estreia em Portugal (Fantasporto) em Fevereiro de 1989

 


“Dead Ringers / Irmãos Inseparáveis” é, ainda hoje, um dos mais prodigiosos filmes de David Cronenberg, que nos faz atravessar um demencial universo de horror, com Jeremy Irons num dos maiores desafios da sua carreira. Efectivamente, o filme conduz-nos a uma impressionante incursão pelos domínios da demência, através da acidentada trajectória de dois irmãos gémeos mundialmente famosos, Beverly e Elliott Mantle, ambos fascinados e obcecados pelo universo feminino, ambos prestigiados ginecologistas e ambos incapazes de resistir à atracção pela sexualidade mais bizarra. Um filme tão impressionante e perturbador quanto sofisticado e deslumbrante, na sua atmosfera de drama de horror e na sua prodigiosa execução técnica e artística.

Cronenberg criou um novo jogo de impossíveis combinações: sadomasoquismo e ginecologia, angústia existencial e toxicodependência criativa, sedução e mutilação. Jeremy Irons, não é demais dizê-lo, é absolutamente deslumbrante no seu duplo jogo de espelhos consigo próprio que constitui, sem dúvida, uma das mais complexas interpretações de toda a sua carreira. Foi distinguido como o melhor actor do Fantasporto de 1989, depois de ter conquistado o troféu atribuído pela Associação de críticos de Nova Iorque e de Chicago, para além de múltiplas nomeações em diversos festivais de cinema. Também Cronenberg foi distinguido um pouco por todo o lado, arrecadando os prémios do Festival de Avoriaz e da Associação de críticos de Los Angeles. 



Em 1967, no Massachusetts, os irmãos gémeos canadianos, Beverly e Elliott Mantle, terminam com louvor a sua especialização em ginecologia. Em Toronto, dez anos depois, os irmãos Mantle têm uma sofisticada clínica, onde Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz, recebe a perturbadora notícia sobre a impossibilidade de poder engravidar. Claire cai numa depressão de contornos masoquistas e deixa-se arrastar para a toxicodependência. Mais tarde, envolve-se numa relação amorosa com o arrogante Elliott que encoraja o irmão a tomar o seu lugar sem que Claire perceba a troca. Porém, o tímido Beverly apaixona-se por Claire e recusa-se a partilhar confidências com o irmão sobre a sua relação. Claire descobre, furiosa, que há dois irmãos gémeos e que teve relações com ambos, mas volta a encontrar-se com Beverly que arrasta para a toxicodependência. Elliott decide encarregar-se da desintoxicação do irmão, e ambos embarcam numa alucinante viagem demencial. Apesar de não serem gémeos siameses funcionam como tal, acabando o filme com uma cena assustadora na qual, com o seu consentimento, Beverly desmembra o irmão numa tentativa de cortar as suas ligações físicas (que na verdade não existem). É uma espécie de pacto de suicídio, sendo curiosamente um dos finais menos derrotistas de Cronenberg (ainda que este advogue que nenhum final dos seus filmes seja derrotista).



David Cronenberg abordou neste filme um tema que é já uma constante em toda a sua extensa e densa carreira cinematográfica: a multiplicidade de questões que envolvem a construção de identidade dos seres humanos e a profundidade psicológica de seus personagens diante das metamorfoses físicas e comportamentais que lhes surgem à medida que evoluem dentro da dinâmica de suas vidas, mergulhadas num tecido social extenso. Guiado pelo argumento escrito em parceria com Norman Snider, inspirado no livro de Bari Wood e Jack Geasland, Cronenberg apresenta aos espectadores a trajectória de Bev e Elliot, gémeos que deabulam de maneira brilhante pela narrativa, graças ao desempenho dramático e eficiente de Jeremy Irons. Curioso que passado algum tempo se consiga distinguir um irmão do outro, apenas com a representação que o genial actor fez dos dois personagens: Elliot é o lado calculista, dominante, agressivo, narcisista e ameaçador da “entidade” simbolizada por esse duplo que se apresenta unificado. Beverly é o irmão mais inseguro, educado, gentil, calmo, uma espécie de sombra do lado obsessivo e mais prepotente do outro. Os dois irmãos espelham as vidas um do outro e, ao longo do filme, os traços que os pareciam dividir fundem-se, ao ponto de no fim ser difícil diferenciá-los. Tornaram-se pois, numa só pessoa (mais cônjugues que, de facto, irmãos). 



Já adultos, os gémeos comunicam e circulam socialmente de maneira muito parecida. Isso é o que permite a troca de parceiras sexuais e as aparições públicas onde um se passa pelo outro, de acordo com os afazeres e preferências de cada um. Mas tudo muda com a chegada de Claire Niveau, uma famosa actriz que decide realizar um tratamento na clínica dos irmãos, por causa de questões complicadas do seu útero. A breve trecho Claire vê-se envolvida naquele estranho triângulo a três, tornando-se a responsável pela inesperada, mas inevitável ruptura que trará consequências catastróficas para todos os envolvidos nesta trama complexa sobre identidade, obsessões, desejos e paixões, que levam os perotagonistas às últimas consequências. Adivinha-se, portanto, um desfecho trágico e nada hollywoodiano orquestrado por David Cronenberg.




 

Sempre acompanhados pela pomposa trilha sonora de Howard Shore, parceiro constante do cineasta, os personagens circulam pelo filme acompanhados pelos movimentos e quadros sofisticados da direção de fotografia peculiar de Peter Suschitzky, eficiente por valorizar cada frame dos enquadramentos, não sendo apenas mais um amontoado de imagens genéricas. Iluminado de maneira a ressaltar os dramas que envolvem cada figura, o sector ganha maior projeção porque o design de produção de Carol Spier lhe fornece um material de qualidade soberba para filmar, dos cenários aos adereços da direção de arte, em especial, pelo espectro de cores adoptadas, delicadamente selecionadas para a exaltação das camadas psicológicas dos temas expostos, também delineados pelos figurinos de Denise Cronenberg.



Com efeitos especiais igualmente adequados, sector gerenciado por Gordon J. Smith“Dead Ringers” faz um trabalho literalmente visceral, não deixando a devastação física fora da narrativa, em especial nos momentos de insanidade total, como aquela cena onírica e horripilante, carregada de carga simbólica, quando Claire corta com os dentes o cordão umbilical que une os dois gémeos (trata-se de um pesadelo, é certo, mas que imagem perturbadora essa). Essa “mulher mutante”, impossibilitada de exercer uma de suas funções biológicas basilares, é o alvo para a ira de um dos irmãos quando as coisas começam a ficar mais complicadas. Elliot busca os serviços de um artista local, Anders Wolleck (Stephen Lack), para a confecção de novos instrumentos cirúrgicos, como se de armas medievais se tratassem.

Impossibilitados de conseguir dar continuidade ao que fazem desde a infância, o momento de separação é inevitável, principalmente quando a actriz catalisadora da ruptura demonstra interesse em Beverly, o que deixa Elliot envolver-se na sua zona de degradação. Na tentativa de um destruir o outro, o lado aparentemente vencedor percebe a impossibilidade de sustentar as suas escolhas. É hora, então, de desarmar e se entregar, num desfecho carregado de simbologia.

 



CURIOSIDADES:

 

- Inicialmente, Jeremy Irons tinha dois camarins e dois guarda-roupas separados, que ele usava dependendo do personagem que interpretava no momento. Mas rapidamente percebeu que um dos objectivos do enredo era a mistura entre os dois personagens. Por causa disso mudou-se para um único camarim e misturou os guarda-roupas, encontrando uma "maneira interna" de interpretar cada personagem de forma diferente, dando a cada uma um "ponto de energia diferente".

 

- Robert De Niro recusou os papéis dos gémeos Mantle porque se sentia desconfortável interpretando um ginecologista.

 

- A Premiere elegeu este filme como um dos "25 filmes mais perigosos" e a Entertainment Weekly classificou-o como um dos 20 filmes mais assustadores de todos os tempos. Como sempre estas classificações, sobretudo vindas das terras do Tio Sam, são exageradas e fora de contexto. Mas que "Dead Ringers" não é um filme para todos os espíritos, lá isso não é.



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