Com Dirk Bogarde, Romolo Valli, Mark Burns, Nora Ricci, Marisa Berenson, Carole André, Björn Andresen, Silvana Mangano, etc.
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A memória cinéfila, pelo contrário, é muito mais verdadeira. Recordamos cenas ou sequências de determinado filme, tal qual ficaram no nosso cérebro. E se essa recordação se encontra porventura um tanto ou quanto embaciada, basta voltarmos ao filme e rever tudo de novo. A única diferença é que, naturalmente, revemos as mesmas imagens mas com outros olhos, porque à medida que crescemos nos vamos transformando em pessoas completamente diferentes. Ou seja, envelhecemos. E esta hipótese é mesmo a única maneira de um filme se poder alterar, adquirindo um novo significado, e não ser sempre igual a si mesmo. Porque no processo de envelhecimento, sempre que revemos um filme que amamos, vamos-lhe dando também um pouco de nós mesmos, numa natural relação amorosa. É que o amor não é um fenómeno quotidiano, necessita de um tempo de assimilação e reconhecimento. E esse tempo traduz-se em cada contacto com o filme amado, em cada olhar, em cada lembrança que ele nos impõe. Estes dois exercícios da nossa mente, o olhar primeiro, a lembrança depois, são imortais e, se esquecidos, sobrevivem no nosso inconsciente.
É por isso que o tempo é o juiz supremo da qualidade de um filme. O entendimento que temos dele é diferente consoante a idade com que o vemos. Daí o não ter já muita paciência com a maioria dos críticos actuais que, por um qualquer filme parecer destacar-se da maioria, o adjectivam logo de "obra-prima", não entendendo sequer o mundo actual, onde a arte cinematográfica se tornou numa indústria mais do que qualquer outra coisa. Como não entendem que o cinema, o verdadeiro cinema, tem por veículo ideal a imagem e não a palavra. Penso mesmo que se poderia dividir os filmes em duas categorias: aqueles em que predomina o argumento e aqueles em que predominam as imagens; o que corresponde quase a dizer: os que são medíocres e os que são belos. No dia em que o grande público consiga ver imediatamente essa diferença entre um filme que se desenvolve pelas imagens e um filme que se desenvolve pelo argumento, nesse dia conseguirá compreender o significado do cinema. Mas temo, sinceramente, que esse dia nunca irá chegar, uma vez que a tendência geral continua cada vez mais ser a utilização da palavra em detrimento da imagem.
Hoje em dia, para se encontrar um bom filme (já não falo no superlativo "excelente") é como encontrar uma agulha em palheiro. O mercado, de há uns bons anos para cá, encontra-se saturado de obras medíocres, onde se destacam de um modo geral os chamados blockbusters, os filmes de animação e um conjunto sem fim de "super-heróis", fabricados em fábricas Marvel, cada um mais estupidificante que o outro, mas que, pelos vistos, se tornou moda e uma ameaça real de continuidade. Salvo raras excepções, o cinema de autor há muito que se esgotou e agora a concorrência é feita ferozmente entre as principais produtoras de filmes, usando técnicas cada vez mais agressivas e sofisticadas da publicidade, como dando razão ao que um dia o cineasta Jean-Luc Godard declarou numa entrevista: «La pub? Ohhhh... Mais ça c'est le fascisme de demain!» É por isso que considero tão importante a memória cinéfila, que nos permite recordar e voltar a ver e a rever obras intemporais, fazendo-nos regressar a uma época onde podíamos escolher entre, por exemplo, um Kubrick, um Truffaut, um Fellini, um Hitchcock, um Bergman ou, neste caso, um Visconti.
Este
filme representa na perfeição o que atrás referi. Vi-o pela primeira vez no dia
17 de Setembro de 1971, na sessão da noite do cinema Monumental, após ter
jantado na cervejaria Portugália da Almirante Reis (nessa altura era a única
que existia), com a minha namorada de então. Ela tinha 16 anos e eu 18 e ambos
detestámos o filme. Hoje consigo entender na perfeição a razão base dessa
rejeição: um par de jovens daquelas idades não pode entender o significado deste
filme, onde se fala de tudo quanto é oposto ao universo particular que
caracteriza quem ainda tem uma vida inteira pela frente, quem por isso mesmo se
sente imortal. Mas tratando-se do grande Luchino
Visconti, fui dando ao filme outras oportunidades ao longo da vida. E em
cada uma dessas oportunidades fui cimentando o fascínio que "Morte em Veneza" começou
depois a exercer em mim, ao ponto de hoje o considerar um dos mais belos filmes
de sempre sobre o envelhecimento e a morte. Mas lá está... Tive de envelhecer
para olhar o filme com uma mentalidade completamente diferente.
"Morte em Veneza" baseia-se no encontro entre dois seres, entre dois mundos, a partir do olhar que lançam um sobre o outro. Visconti, no apogeu da sua carreira artística, inventa uma escrita indissociável da intenção a que serve de expressão. Nenhum diálogo: a comunicação estabelece-se para lá das palavras. Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor já contestado pelo seu habitual público e pelos seus discípulos, tão certo das suas verdades, de uma vida onde os conceitos se encontram meticulosamente arrumados, onde se propagandeia uma visão idealista da beleza, encontra o seu anjo da morte, Tadzio (Björn Andresen), num hotel luxuoso do Lido de Veneza, habitado por uma despreocupada grande burguesia.
"Os Malditos" foi um filme mal amado pela crítica, se bem me lembro. Não sei porquê: considero-o o melhor filme que já se fez s/ a ascensão do nazismo.
ResponderEliminarCuriosamente, JC, foi o filme que me introduziu à obra do Visconti, que me fez querer ver tudo aquilo que estava para trás. Quando esta morte chegou, dois anos depois, já eu era um apaixonado do cinema dele: "Rocco", "Senso", "Osessione", "O Leopardo" por aí...
ResponderEliminarPois, e eu só ao 3º visionamento me apaixonei pelo "Senso"...
ResponderEliminarÉ, os filmes do Visconti têm esse fascínio. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. E surgem-nos sempre cada vez mais belos com o passar dos anos
ResponderEliminarNunca o vi ( de Visconti só O Leopardo e Rocco). Há algum tempo atrás li sobre a vida Björn Andresen após ter feito este filme e fiquei com uma certa aversão a esta obra que todos afirmam ser genial. Talvez um dia... mas gostei de ler o texto.
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