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domingo, agosto 24, 2025

FAR FROM THE MADDING CROWD (1967)

LONGE DA MULTIDÃO
Um filme de JOHN SCHLESINGER

 

Com Julie Christie, Alan Bates, Peter Finch, Terence Stamp, Fiona Walker, Prunella Ransome, Alison Leggatt, Paul Dawkins, etc.

 

UK / 168 min / COR / 16X9 (2.35:1)

 

Estreia em INGLATERRA (Londres) a 17/10/1967
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 29/3/1968 (cinemas Condes e Roma)



Gabriel Oak: «At home by the fire, whenever I look up, there you will be.
And whenever you look up, there I shall be.»


Após consultar as notas do meu amigo Sérgio Vaz, vou começar por recuar no tempo e situar a história de “Longe da Multidão”, o título com que o filme foi exibido em Portugal. Bathsheba Everdene – a protagonista do romance que Thomas Hardy começou a escrever em 1873 e foi sendo publicado em capítulos, como uma novela e anonimamente, na revista Cornhill Magazine em 1874 – é uma personagem absolutamente fascinante. É tão absolutamente fascinante que chegou ao cinema pela primeira vez em 1915, quando o autor estava vivo, passando bem e escrevendo poesia. (Thomas Hardy morreu em 1928, aos 88 anos.) Esta primeira versão para o cinema de “Far From the Madding Crowd”, de 1915, foi dirigida por Laurence Trimble, que também escreveu o respectivo argumento. Florence Turner foi a actriz que interpretou a primeira Bathseba do cinema.



Cinquenta e dois anos depois, na plenitude da década de sessenta, foi-nos apresentada a segunda Bathseba, que veio na pele de uma das actrizes mais fascinantes da História, por quem as gerações nascidas aí digamos entre 1940 e 1955 se apaixonaram – Julie Christie. A mulher sobre quem François Truffaut escreveu: «Julie é um coquetel de imperfeições fascinantes: um rosto bem animal, de loba, sobre um corpo de menina. É preciso acrescentar a sua voz, um pouco em contradição com o físico. Como se ela tivesse bebido 1.800 uísques, o que não é verdade. Não fuma, não bebe, mas rói as unhas. Seu físico é feito de contradições.»



Foi uma produção totalmente britânica; o director, John Schlesinger, já havia dirigido Julie em “Darling” (1965), e os outros três actores principais davam pelo nome de Alan Bates, Terence Stamp e Peter Finch. Ou seja, um elenco de luxo! Bathsheba Everdene não era uma dondoca, nem uma casadoira, nem passava a vida à espera de algum homem ou em função de algum homem. Era uma mulher forte, de desejos poderosos, que se orgulhava de ser independente. Uma mulher trabalhadora, capaz de meter a mão na massa e ao mesmo tempo administrar o trabalho de várias dezenas de pessoas. Uma mulher que atraiu as atenções e o amor não de um ou dois, mas de três homens.

Isso tudo tendo sido criado em 1873, em plena Era Victoriana, um tempo de muita moralidade rígida e muita censura a quem se desviava das regras vigentes. E criada por um homem que tinha então apenas 33 anos, e portanto não tinha sequer tido muito tempo para conhecer bem as mulheres (e será que algum homem se pode gabar de o ter conseguido ao longo dos séculos?). Thomas Hardy só viria a casar-se em 1874, o ano em que “Far From the Madding Crowd” apareceu em forma de folhetim. A moça, Emma Lavinia Gifford, era cunhada do reitor de uma escola de Cornwall, onde Hardy foi trabalhar como restaurador – filho de um construtor civil, tornou-se um requisitado profissional nessa arte, a mesma do personagem central de seu romance maior, “Judas, o Obscuro”. Esse grande escritor é uma das muitas provas de que a vida é mesmo cheia de surpresas. Seria extremamente difícil imaginar que um sujeito da classe média de Dorset, região do extremo Sul da Inglaterra, rural, sem uma cidade importante ou sequer média, pudesse vir a criar uma personagem que parece saída da imaginação de uma feminista nova-iorquina pós anos 1960.



“Far From the Madding Crowd” é um filme extraordinário que não só faz jus ao romance de Thomas Hardy, como também ostenta, como já se disse, um elenco soberbo. A personagem-título, Bathsheba Everdene (Julie Christie), em particular, evita cair no sentimentalismo, enquanto explora magnificamente as capacidades do seu talento como actriz. O papel varia de dominadora a insegura, de arrependida a triunfante. De mulher doce a grande dama de salão. Há também uma figura trágica: Fanny Robin (a estreante Prunella Ransome), que contribui para a profundidade do enredo com uma actuação impressionante: é engravidada pelo sargento Troy (Terence Stamp), e de seguida abandonada. Mais tarde regressa, mas para morrer, juntamente com o filho ainda dentro do seu ventre.

À medida que Bathsheba se torna adulta, três candidatos a cercam: o pastor Gabriel Oak (Alan Bates), que é o primeiro a tentar a sua sorte, logo no início do filme. Mas a sua proposta é rejeitada, Bathsheba não o ama. Ainda por cima perde todo o seu rebanho numa noite (que se despenha do alto de uma falésia, guiado por um dos cães de guarda que provavelmente terá enlouquecido para actuar desse modo) e é obrigado a partir em busca de emprego e melhores dias. Bathsheba, entretanto, herda uma propriedade de um tio e é lá que Gabriel encontra trabalho. Depois, há o Sr. Boldwood (Peter Finch), um vizinho rico e mais velho, uma figura patética com fama de não dar grande importância às questões sentimentais, mas que se apaixona perdidamente pela sua nova vizinha. De negação em negação, em adiantamentos sucessivos, Bathsheba vai recusando também as suas propostas de casamento. E por fim temos o sargento Troy (Terence Stamp), mais novo do que os seus rivais e que é extremamente popular junto ao sexo oposto. Como quase sempre acontece na vida real é tal fama que ajuda a compor o ramalhete, juntamente com uma certa áurea de canalha e cabotino. Bathsheba apaixona-se finalmente e o casamento vem de facto a acontecer. A favor de Troy pode-se referir a sua paixão por Fanny, mesmo depois de morta. A famosa cena junto ao caixão é bem paradigmática, quando Troy profere aquela terrível declaração a Bathsheba: «This woman, even dead, is more to me dear than you ever were... or are... or could be.»



Não vou contar tudo o que se segue, mas posso adiantar que a batalha com as forças da natureza naturalmente desempenha um papel, mas isso não é um fim em si mesmo: um incêndio, uma tempestade e uma doença num rebanho de ovelhas dão mais ênfase à história, criando no espectador a expectativa de um desenlace mais apropriado e, porque não, um pouco mais feliz. Nunca tendo lido o romance de Thomas Hardy, é de admitir que o mesmo seja mais pormenorizado do que o filme, e que contenha mesmo factos que aqui não são referidos. Mas é o eterno risco que corremos quando um filme é baseado numa obra literária de grandes dimensões e não temos a possibilidade de comparação. Mesmo assim, “Longe da Multidão” é um filme de grande desenvoltura (são quase três horas de projecção), muito agradável de se ver, mesmo passado mais de meio século e no mínimo justifica-se pelo retrato que nos dá do século XIX inglês. Resta ainda falar de uma cinematografia de cortar o fôlego (da autoria do futuro realizador Nicolas Roeg, que se estrearia três anos depois com “Perfomance”), por onde se passeiam as grandes emoções humanas.


CURIOSIDADES:

- Rodado em Dorset e Wiltshire, o filme ostenta uma autenticidade de época e personagens tão surpreendente que levou o designer de produção Richard MacDonald a comentar: «fazer este filme pode ter sido uma das últimas chances de filmar a Inglaterra rural como ela era em meados do século XIX». Boa parte do crédito vai para os 723 fazendeiros vizinhos e suas famílias, que foram recrutados para as cenas de multidão e pequenos papéis.

- Na versão que correu na altura da estreia em Inglaterra, foi abolida a cena da luta de galos por causa da lei inglesa que proibia mostrar cenas de crueldade com animais. Com cerca de 12 segundos, essa cena foi acrescentada quando o filme foi editado em DVD, passando, curiosamente, a durar cerca do dobro.

- Este foi o primeiro filme de John Schlesinger após o grande sucesso "Darling", de 1965. Reuniu-se com o produtor Joseph Janni, o argumentista Frederic Raphael e a actriz principal Julie Christie para porem de pé esta adaptação do livro. Raphael, um ávido apreciador dos escritos de Thomas Hardy, pode ter sido fundamental, afirmando posteriormente que, em vez de ser, como "Darling", um filme sobre "pessoas bonitas", seria "um filme sobre pessoas que realmente eram bonitas". O sucesso anterior garantiu à equipa liberdade de ação e também um grande orçamento, que Schlesinger estimou numa entrevista em cerca de 2,750 milhões de dollars. No entanto, o filme provou ser um grande fracasso de bilheteria, e Schlesinger raramente o elogiou, embora tenha gradualmente conquistado uma considerável reputação crítica.


NOTA: Vi hoje pela quinta ou sexta vez esta versão de 1967 e em seguida tentei ver a nova adaptação. E digo "tentei" porque realmente não consegui chegar ao fim. Com menos 1 hora de duração, não é mais do que um resumo desta versão, a qual, por sua vez, já era um resumo do romance original. Os factos que eram apresentados com calma, sem pressas, são aqui “despachados” num piscar de olhos, no que ousaria apelidar de “corrida louca”. Aliás, é uma característica do cinema de hoje, em que tudo é feito para ganhar o máximo de dinheiro num mínimo de tempo. E depois o casting, nossa senhora! Bem sei que substituir a radiosa Julie Christie não era tarefa fácil, mas entregar o papel principal a uma actriz sem muita graça e bastante vulgar (Carey Mulligan)? Não esquecer que a beleza da protagonista é um dos motivos principais pelo qual ela atrai o sexo oposto. E Tom Sturridge que faz de Troy? Parece um menininho de sacristia… Onde está a cabotinice e a canalhice que Terence Stamp tão bem representava? O único que realmente não destoa é o Matthias Schoenaerts no papel de Oak. Enfim, um filme perfeitamente escusado. Quem quiser ter uma boa ideia do mundo rural inglês do século XIX, embora porventura muito incompleto, deve continuar a ver (e a rever) a versão de 1967 e não perder o seu tempo com esta nova adaptação.

terça-feira, agosto 19, 2025

JOHNNY GOT HIS GUN (1971)

E DERAM-LHE UMA ESPINGARDA...
Um filme de DALTON TRUMBO



Com Timothy Bottoms, Kathy Fields, Marsha Hunt, Jason Robards, Donald Sutherland, Diane Varsi, Charles McGraw, Sandy Brown Wyeth, Donald Barry, etc.

EUA / 111 min / Cor e PB /
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA (Festival de Cannes) a 14/5/1971 
Estreia nos EUA (NY) a 4/8/1971 
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 23/7/1975 (cinema Império)



Joe: «I don't know whether I'm alive and dreaming 
or dead and remembering»

Dalton Trumbo (1905-1976) foi um prolífero e galardoado escritor de Hollywood, responsável por muitos e célebres argumentos de filmes: “Roman Holiday” (1953), “Spartacus” (1960), “Exodus” (1960), “The Sandpiper” (1965), “The Fixer” (1968), “Papillon” (1973) ou “Always” (1989) são alguns dos seus trabalhos mais conhecidos. Durante 6 anos (1943-1948) esteve filiado no Partido Comunista americano, o que o levou a ser integrado na célebre lista negra – os 10 de Hollywood – durante o período da “caça às bruxas”, tendo passado 11 meses na prisão federal em Ashland, Kentucky. Depois de cumprida a sentença, foi viver para o México, onde continuou a escrever para o cinema, mas sob os mais diversos pseudónimos. Chegou inclusivé a ganhar dois Óscares: o primeiro em 1954, com a assinatura de Ian McLellan Hunter, pelo filme “Roman Holiday”; e o segundo em 1957, dessa vez como Robert Rich, pelo filme “The Brave One”. Nos inícios da década de 60, Trumbo foi finalmente reintegrado no sindicato de argumentistas de Hollywood. O seu primeiro e único filme como realizador, seria este "Johnny Got His Gun". Com argumento também seu e baseado num antigo romance homónimo (publicado em 1937), o filme é um cruel e terrível manifesto anti-bélico. A acção é situada na Grande Guerra (mas poderá ser extensivo a qualquer outro conflito), e a situação descrita é a de um corpo sem membros e sem rosto de um soldado vitimado por uma explosão (Timothy Bottoms, no mesmo ano de "The Last Picture Show"), autêntico “tronco de carne” que deseja, interiormente, voltar a sentir o toque e o contacto com o mundo à sua volta. O filme visa o absurdo de qualquer guerra, mas fá-lo de uma forma brutal e horrenda, visando também o lado libertador da eutanásia (isto num filme de 1971!); e nunca cai na retórica fácil ou na prédica moralizante.


Com colaboração de Luis Buñuel, que dirigiu as sequências em que intervém Jesus Cristo (Donald Sutherland), o filme atingiu rapidamente o status de cult-movie, devido à sua pouca visibilidade, um pouco por todo o lado. Proibidissimo no tempo da ditadura, só depois de Abril de 1974, com o fim da censura, é que “Johnny Got His Gun” pôde ser apresentado em Portugal. Vi-o em ante-estreia, a 23 de Julho de 1975, no cinema Império, em Lisboa, integrado no XII Ciclo da Casa da Imprensa.


Trata-se de um filme impressionante, de uma espantosa violência. Não a violência vulgar dos tiros, dos murros, ou do sangue, mas a violência cruel e esmagadora duma realidade diabolicamente viva. De novo a guerra e as suas consequências – ou melhor, uma das suas mais dramáticas consequências. É a história de um homem destroçado, física e mentalmente. Joe Bonham (Timothy Bottoms) não é mais do que um pedaço informe de “carne inteligente”, designado por “casualidade não identificada nº 47”. Que teima em não morrer. A medicina e a ciência rejubilam com a vitória alcançada, ignorando o trágico sofrimento daquele ser e vislumbrando apenas matéria-prima para experiências. O médico que o “salvou” esconde-o dos olhos dos leigos e mostra-o como troféu aos seus pares - o  grande momento da sua carreira! Aos poucos, Joe vai-se apercebendo do seu estado real, descobrindo, angustiadamente, a falta do braço direito, do outro braço, das duas pernas e, finalmente, do rosto, substituído por um buraco disforme. 

Mas Dalton Trumbo vai mais longe. O seu filme é, também, uma crítica intransigente à mentalidade bélica dos americanos. Em nome de um falso patriotismo (habilmente transformado em sinónimo de interesses) tudo se sacrifica, tudo se justifica. Até (coloquemo-nos na época – 1918 – e no esquema social vigente) a própria virgindade de uma filha... pouco menos do que sagrada. Com efeito, partilhamos com Joe a sua primeira experiência sexual. A rapariga, Kareen (Kathy Fields), está em casa, sentada ao seu colo. O pai chega e surpreende-os em mútuas carícias. Espera-se uma descompostura e a expulsão do rapaz, tal como mandava a tradição na época. Mas após um breve lampejo de fúria a reacção é precisamente a oposta. Que diabo, Joe parte para a guerra no dia seguinte e há que lhe dar as honras devidas aos heróis, há que ser-se condescendente, há que ser-se patriótico. E o pai da moça convida-os a passar a noite no quarto.


Duplamente galardoado em Cannes (Prémio FIPRESCI e Grande Prémio do Júri), “Johnny Got His Gun” é de longe o melhor filme anti-guerra e pró-eutanásia jamais realizado. O seu grande horror, o que nos continua a perturbar ainda hoje, reside sobretudo no que não é mostrado no écran, uma vez que vemos apenas um lençol branco a cobrir os restos do que em tempos foi um homem. A imaginação transcende sempre a realidade, e Dalton Trumbo soube muito bem passar a sua mensagem. Quer filmando alternadamente a cores (para as fantasias e as lembranças) e a preto-e-branco (para a realidade) quer utilizando a voz-off para que o público pudesse ouvir os pensamentos de Joe Bonham. Socorrendo-se também de cenas de reportagens verídicas, Trumbo destribui a sua narrativa por vários hospitais, onde Joe é mantido em segredo, fechado em quartos vazios, mantido a soro e a oxigénio.

Num desses hospitais Joe encontra uma enfermeira que se interessa humanamente por ele: toca-o sem repulsa, beija-lhe a fronte, chega mesmo a masturbá-lo, ao dar-se conta que é um prazer que ele ainda é capaz de sentir. Entre os dois conseguem estabelecer uma via de comunicação (por sinais em linguagem morse) o que possibilita Joe a dar a conhecer o seu desejo: quer ser exibido de feira em feira, quer que as pessoas se apercebam daquilo que uma guerra pode criar. A recusa dos médicos a tal pedido é obviamente a reacção esperada e a Joe só lhe resta implorar por uma morte piedosa. Mas uma vez mais esbarra na cegueira de todos para quem a práctica da eutanásia é imoral, por muito desesperados que sejam os seus apelos. A enfermeira ainda tenta ir de encontro ao seu desejo final, mas é impedida nessa piedosa intenção e expulsa do quarto. «SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...», é a mensagem final de Joe, antes do écran escurecer. Dalton Trumbo realizou um filme onde a fronteira entre a vida e a morte se reduz a uma linha terrivelmente difusa. Onde – ainda mais importante – a guerra e os sistemas políticos que a alimentam (quase sempre em nome da paz) são intransigentemente denunciados. Por alguma razão Dalton Trumbo foi um dos “malditos” do cinema americano.


CURIOSIDADES:

- Em 1989 segmentos do filme foram incluídos no videoclipe "One" do grupo Metallica. Eventualmente, a banda comprou os direitos do filme para poder continuar a exibi-lo nas suas apresentações ao vivo, sem ter que pagar royalties.

- John Lennon e o cineasta japonês Akira Kurosawa referiram-se a "E Deram-lhe Uma Espingarda..." como um dos seus filmes favoritos.

Quando o filme foi exibido no Festival de Cinema de Cannes, o público permaneceu em silêncio por vários minutos após o final.






MARNIE (1964)

MARNIE
Um filme de ALFRED HITCHCOCK


Com Tippi Hedren, Sean Connery, Diane Baker, Martin Gabel, Louise Latham, Bob Sweeney, Milton Selzer, Alan Napier, Bruce Dern, etc.


EUA / 130 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia na GB a 9/7/1964

Estreia nos EUA a 22/7/1964
Estreia em PORTUGAL a 13/1/1967



Mark Rutland: «But I do want to go to bed, Marnie. 
I very much want to go to bed»

"Marnie" foi o filme que me introduziu à obra de Sir Alfred Hitchcock. Na altura tinha apenas 13 anos e nunca tinha ouvido falar em semelhante nome. O que era perfeitamente natural, porque desconhecia a importância do realizador na execução de um filme. O que me interessava era apenas os nomes dos actores, e mesmo estes eram quase sempre ilustres desconhecidos. Como neste caso. Não tinha visto qualquer dos filmes de James Bond (e já tinham sido rodados quatro) e portanto Sean Connery era uma autêntica novidade. Bem como Tippi Hendren, entenda-se. Vi o filme durante umas mini-férias em Johannesburg, num daqueles cinemas de sessões contínuas (que apelidávamos de "piolhos"), de aspecto sombrio e frequência duvidosa, mas que faziam as minhas delícias de jovem adolescente.

Havia sempre dois filmes em cartaz e a programação não fugia muito ao cinema fantástico e de ficção-científica (vi por lá muitos monstros "made in Japan"), ao western-spaghetti ou então aos filmes de aventuras, nomeadamente de piratas. Normalmente, quando entrava na sala, lá para o fim da manhã (as sessões começavam bem cedo), um dos filmes já ia a meio e por isso passava longas horas no cinema, até a visão do programa em exibição ficar completa. Lembro-me que havia um tabuleiro corrido à frente e ao longo das cadeiras, onde se colocavam as bebidas e as sandes que íamos consumindo sem despregar os olhos do écran: belos hot-dogs, os que eu comi, com enormes salsichas vermelhas e cheios de tudo e mais alguma coisa. Nunca mais na vida comi algo que se assemelhasse.

Mas voltando àquela sessão muito especial. Às vezes os programadores dessas salas deviam enganar-se e lá passavam um filme ou outro diferente do habitual. Como neste caso, no Royalty (assim se chamava este cinema). Nesse dia, 24 de Janeiro de 1967, uma terça-feira, os filmes em exibição chamavam-se "Marnie" e "Massacre na Cidade de Mármore". Deste último desconheço o título original ou mesmo o elenco e o realizador, pelo que não faço a mínima ideia de que filme se tratava. De qualquer modo não é para aqui chamado, por isso deixem-me avivar as minhas primeiras memórias sobre "Marnie". Foram essencialmente duas: o abate de um cavalo depois deste ter embatido com uma das patas traseiras num muro de pedra e o vermelho, uma cor que durante muito tempo associei a "Marnie". Com toda a razão, diga-se, conforme pude constatar em futuras visões, já mais esclarecidas. Mas foi um filme que de certo modo me perturbou na altura, sem contudo ter percebido a razão de tal perturbação. Até porque houve muita coisa da história a que passei ao lado: não havia legendas e a minha compreensão da língua inglesa era practicamente nula naquela altura.

Ao longo dos anos vi todos os agora célebres filmes de Hitchcock (a grande maioria por diversas vezes), tenho os meus favoritos bem sedimentados ("Vertigo", "Notorious", "North By Northwest", "The Wrong Man", "Psycho""The Birds", "Dial M For Murder", a 2ª versão de "The Man Who Knew Too Much" e este "Marnie" fazem sempre parte do meu Top 10 hitchcockiano); mas aquela primeira visão do filme ainda hoje me assombra, perdurando nas minhas memórias cinéfilas. Realizado em 1964, logo após "The Birds", o filme é a última grande obra de Hitchcock, que depois dela rodaria apenas mais 4: "Torn Curtain" [1966], "Topaz" [1969], talvez um dos piores do mestre, "Frenzy" [1972], um regresso em grande e o último, "Family Plot" [1976]. Com "Marnie" Hitchcock retomava os temas da anormalidade de comportamento originada na infância, que são comuns a "Spellbound" e a "Psycho", mas agora referentes a um personagem feminino.

Inicialmente Hitchcock tinha pensado em Grace Kelly para protagonista (seria a sua quarta colaboração com o mestre, depois dos êxitos "Dial M For Murder" e "Rear Window", ambos de 1954, e de "To Catch a Thief", de 1955). Mas Grace tornara-se já princesa do Mónaco e o seu regresso ao mundo do cinema (por ela tão desejado) teve de ser plebescitado pela minúscula população do Principado. O resultado foi um rotundo "não"! Grace teve de se contentar com a sua nova condição de soberana e Hitchcock resolveu apostar de novo em Tippi Hedren, que tão boa conta tinha dado de si nos "Pássaros".

"Marnie" é portanto Tippi Hendren, uma mulher solitária, traumatizada, forçada a roubar e, como tudo isso não bastasse, sexualmente frígida, com uma repulsa constante a ser tocada pelo sexo oposto, aqui representado pelo charmoso e atlético Sean Connery então nos píncaros da fama por causa dos seus filmes de agente secreto 007 com ordem para matar. Mark Rutland (assim se chama o personagem de Connery), assume o papel de libertador dos traumas de Marnie, a ponto de forçar um casamento sem grandes perspectivas de futuro. Hitchcock joga com a complexidade das relações Marnie-Mark, procurando tornar evidente a sua interdependência, os seus jogos de ocultações e de disfarces, de mistérios e de surpresas, de aparências e de realidades.

Ao contrário de outros filmes, Hitchcock não se fica pela alusão e chama as coisas pelo seu nome. Marnie é mesmo frígida, apesar de tanto nós como Sean Connery só darmos por isso quase a meio do filme. A viagem de núpcias por barco é um desastre. Depois da consumação à força do casamento (trata-se inequivocamente de uma violação), Marnie chega a tentar o suicídio, atirando-se para a piscina do barco. Aterrorizada pela cor vermelha, vítima de horríveis pesadelos, Marnie é uma neurótica e a cleptomania não é mais do que uma compensação para a frigidez.

Tal como eu, Truffaut tinha uma predilecção especial por "Marnie" e numa das suas célebres entrevistas com o mestre do suspense, Hitchcock confessava-lhe: «Se eu tivesse utilizado, como no meu velho filme inglês "Murder", o processo do monólogo interior, ouviríamos Sean Connery dizer a si próprio: "Desejo que ela se apresse a cometer novo roubo, para poder apanhá-la em flagrante e possuí-la finalmente". Desse modo, conseguiria um duplo suspense. Filmaríamos sempre Marnie do ponto de vista de Mark e mostraríamos a sua satisfação quando vê a rapariga cometer o roubo. Para falar cruamente, deveria ter mostrado Sean Connery surpreendendo a ladra diante do cofre-forte, desejoso de lhe saltar para cima e de a violar ali mesmo. Mas não podemos realmente representar estas coisas no écran, porque o público recusaria, dizendo. "Oh, não! Isso não!..."»

Transcreve-se de seguida um extracto da crítica de João Bénard da Costa sobre o filme: «Tal como "Spellbound", "Marnie" só aparentemente é um filme sobre a psicanálise. É um filme sobre o desejo sexual, correlativo, no universo católico que forma e informa Hitchcock, do tema da culpa. Se "The Birds" é o ponto culminante da interrogação de Hitch sobre a culpa, "Marnie" é o seu equivalente sobre o tema do desejo e da sua culpada associação ao Mal. Porque nenhumas das associações psicanalíticas do filme explica Marnie ou Mark, ou explica a atracção que os leva um para o outro, ou um contra o outro.

O primeiro plano do filme mostra-nos as imagens de um livro a desfolhar-se. Como esse livro, Marnie é um personagem que quer ser aberto. Ao cavalo que Mark lhe dá e que tanto ama, dirá a certa altura: "Se queres morder alguém, morde-me a mim." Depois dessas imagens, destacam-se no silêncio os passos de Marnie, levando na mão duas carteiras de pele de crocodilo, uma cinzenta, outra amarela. Essas duas cores acompanham a protagonista ao longo de todo o filme. E na cantilena final das crianças faz-se referência a uma "senhora de carteira de crocodilo" chamada em vez do médico, quando tudo fica pior. A referência é obscura, mas não será ousado ver nessa senhora uma metáfora da morte. Por isso, a revelação do episódio da infância nada resolve. A frigidez de Marnie é a máscara do seu desejo, forma suprema de voracidade sexual.

A certa altura do filme, a mãe diz a Marnie que as únicas coisas que amamos são aquelas que nunca conseguimos dizer. "Marnie" é um filme sobre o indizível do sexo e do desejo e sobre o absurdo de os tentar compreender através da psicanálise ou de outra explicação qualquer. Num filme em que estamos sempre descentrados (nunca nos identificamos com Mark, nunca nos identificamos com Marnie - o que é, de certo modo, novo na obra de Hitch - e talvez daí a perplexidade do espectador), o ponto de vista é o da fissura entre a total assunção do desejo e a sua total recusa. Para desejarmos totalmente, temos totalmente que nos reter. Nenhuma explicação explica, nenhuma palavra liberta. Só o mistério total pode conduzir ao que é totalmente misterioso. "Marnie" é o filme do indizível. Por isso acaba, sem saída, em trompe l'oeil, num cenário em que todas as perspectivas estão distorcidas.»

CURIOSIDADES:

- Evan Hunter, argumentista que já tinha trabalhado com Hitchcock em "The Birds", opôs-se fortemente a escrever a cena em que Mark viola Marnie durante a lua-de-mel. Hitchcock despediu-o de imediato e contratou uma mulher, Jay Presson Allen, que não teve qualquer problema, dizendo inclusivé que a cena realçava o carisma de Sean Connery. Hitch confessou mais tarde que aquela cena tinha sido a razão principal pela qual fizera o filme.

- Para filmar as cenas de Marnie a cavalgar, Hitchcock usou um cavalo mecânico da Disney. Aliás, é bem visível a utilização de cenários durante essas sequências (um dos aspectos menos conseguidos do filme, mas a técnica cinematográfica ainda não tinha evoluído o suficiente naquela altura).

- Depois de filmar algumas cenas com Connery, Tippi Hedren perguntou a Hitchcock se ela tinha mesmo de ser frígida. «Have you seen him?», perguntou a actriz, referindo-se ao jovem e musculado Connery. «Yes, my dear, it's called acting», respondeu Hitchcock.

- Tippi Hedren e Hitchcock desentenderam-se variadíssimas vezes no set, tendo a actriz mais tarde confessado que a amizade que a ligara ao realizador tinha acabado  no final das filmagens, apesar de "Marnie" ser o seu filme favorito entre todos aqueles que protagonizou.

- Foi depois de verem algumas cenas do primeiro filme de Sean Connery como James Bond ("Dr. No"), que Hitchcock e a argumentista Jay Presson Allen decidiram de imediato contratar a jovem estrela para o papel de Mark, apesar de o não considerarem como o típico aristocrata americano retratado no livro de Winston Graham, em que o filme é baseado.




- A música de "Marnie" foi a última colaboração de Bernard Harmann com Hitchcock.

- O filme estreou-se em Nova Iorque numa sessão dupla. O outro filme, "Never Put It In Writing", era interpretado por Pat Boone.

- Depois de se ter visto impossibilitado de contratar Grace Kelly (por imposição da população do Mónaco, que não viram com bons olhos que a sua soberana voltasse ao mundo do cinema), e antes de se decidir por Tippi Hedren, Hitchcock ainda pensou nas actrizes Eva Marie Saint, Lee Remick, Vera Miles, Claire Griswold e Susan Hampshire. Catherine Deneuve declarou mais tarde em entrevistas que teria adorado interpretar o papel de Marnie.

- O filme foi filmado entre 26 de Novembro de 1963 e 19 de Março de 1964, e teve um orçamento de cerca de 3 milhões de dólares.

- A aparição de Hitchcock (cameo obrigatório em grande parte dos seus filmes), ocorre logo no início, a saír de uma porta no corredor do hotel onde Marnie se dirige para trocar de identidade.




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