IRMÃOS INSEPARÁVEIS
Um filme de DAVID CRONENBERG
Com Jeremy
Irons, Geneviève Bujold, Heidi Von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas,
Stephen Lack, etc.
EUA-CANADÁ /
116 m / COR /
16x9 (1.85:1)
Estreia no Canadá
(Festival de Toronto) a 8/9/1988
Estreia nos EUA a
23/9/1988
Estreia em Portugal
(Fantasporto) em Fevereiro de 1989
“Dead Ringers / Irmãos Inseparáveis”
é, ainda hoje, um dos mais prodigiosos filmes de David Cronenberg, que nos faz atravessar
um demencial universo de horror, com Jeremy Irons num dos maiores desafios da
sua carreira. Efectivamente, o filme conduz-nos a uma impressionante incursão
pelos domínios da demência, através da acidentada trajectória de dois irmãos
gémeos mundialmente famosos, Beverly e Elliott Mantle, ambos fascinados e obcecados pelo universo
feminino, ambos prestigiados ginecologistas e ambos incapazes de resistir à
atracção pela sexualidade mais bizarra. Um filme tão impressionante e
perturbador quanto sofisticado e deslumbrante, na sua atmosfera de drama de
horror e na sua prodigiosa execução técnica e artística.

Cronenberg criou um novo jogo de
impossíveis combinações: sadomasoquismo e ginecologia, angústia existencial e
toxicodependência criativa, sedução e mutilação. Jeremy Irons, não é demais dizê-lo, é absolutamente
deslumbrante no seu duplo jogo de espelhos consigo próprio que constitui, sem
dúvida, uma das mais complexas interpretações de toda a sua carreira. Foi distinguido
como o melhor actor do Fantasporto de 1989, depois de ter conquistado o troféu
atribuído pela Associação de críticos de Nova Iorque e de Chicago, para além de
múltiplas nomeações em diversos festivais de cinema. Também Cronenberg foi
distinguido um pouco por todo o lado, arrecadando os prémios do Festival de
Avoriaz e da Associação de críticos de Los Angeles.

Em 1967, no Massachusetts, os irmãos
gémeos canadianos, Beverly e Elliott Mantle, terminam com louvor a sua
especialização em ginecologia. Em Toronto, dez anos depois, os irmãos Mantle
têm uma sofisticada clínica, onde Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz,
recebe a perturbadora notícia sobre a impossibilidade de poder engravidar. Claire
cai numa depressão de contornos masoquistas e deixa-se arrastar para a
toxicodependência. Mais tarde, envolve-se numa relação amorosa com o arrogante
Elliott que encoraja o irmão a tomar o seu lugar sem que Claire perceba a troca.
Porém, o tímido Beverly apaixona-se por Claire e recusa-se a partilhar
confidências com o irmão sobre a sua relação. Claire descobre, furiosa, que há
dois irmãos gémeos e que teve relações com ambos, mas volta a encontrar-se com
Beverly que arrasta para a toxicodependência. Elliott decide encarregar-se da
desintoxicação do irmão, e ambos embarcam numa alucinante viagem demencial. Apesar de não serem gémeos siameses funcionam como tal, acabando o filme com uma cena assustadora na qual, com o seu consentimento, Beverly desmembra o irmão numa tentativa de cortar as suas ligações físicas (que na verdade não existem). É uma espécie de pacto de suicídio, sendo curiosamente um dos finais menos derrotistas de Cronenberg (ainda que este advogue que nenhum final dos seus filmes seja derrotista).

David Cronenberg abordou neste filme um tema que é já uma constante em
toda a sua extensa e densa carreira cinematográfica: a multiplicidade de
questões que envolvem a construção de identidade dos seres humanos e a
profundidade psicológica de seus personagens diante das metamorfoses físicas e
comportamentais que lhes surgem à medida que evoluem dentro da dinâmica de suas
vidas, mergulhadas num tecido social extenso. Guiado pelo argumento escrito em
parceria com Norman Snider, inspirado no livro de Bari Wood e Jack
Geasland, Cronenberg apresenta aos espectadores a trajectória de Bev e Elliot, gémeos
que deabulam de maneira brilhante pela narrativa, graças ao desempenho
dramático e eficiente de Jeremy Irons. Curioso que passado algum tempo se
consiga distinguir um irmão do outro, apenas com a representação que o genial
actor fez dos dois personagens: Elliot é o lado calculista, dominante,
agressivo, narcisista e ameaçador da “entidade” simbolizada por esse duplo que
se apresenta unificado. Beverly é o irmão mais inseguro, educado, gentil,
calmo, uma espécie de sombra do lado obsessivo e mais prepotente do outro. Os dois irmãos espelham as vidas um do outro e, ao longo do filme, os traços que os pareciam dividir fundem-se, ao ponto de no fim ser difícil diferenciá-los. Tornaram-se pois, numa só pessoa (mais cônjugues que, de facto, irmãos).

Já adultos, os gémeos comunicam e circulam socialmente de
maneira muito parecida. Isso é o que permite a troca de parceiras sexuais e as
aparições públicas onde um se passa pelo outro, de acordo com os afazeres e preferências de
cada um. Mas tudo muda com a chegada de Claire Niveau, uma
famosa actriz que decide realizar um tratamento na clínica dos irmãos, por
causa de questões complicadas do seu útero. A breve trecho Claire vê-se
envolvida naquele estranho triângulo a três, tornando-se a responsável pela
inesperada, mas inevitável ruptura que trará consequências catastróficas para
todos os envolvidos nesta trama complexa sobre identidade, obsessões, desejos e
paixões, que levam os perotagonistas às últimas consequências. Adivinha-se, portanto,
um desfecho trágico e nada hollywoodiano orquestrado por David Cronenberg.

Sempre acompanhados
pela pomposa trilha sonora de Howard Shore, parceiro constante do cineasta, os
personagens circulam pelo filme acompanhados pelos movimentos e quadros
sofisticados da direção de fotografia peculiar de Peter Suschitzky, eficiente
por valorizar cada frame dos enquadramentos, não sendo apenas mais um amontoado de
imagens genéricas. Iluminado de maneira a ressaltar os dramas que envolvem cada
figura, o sector ganha maior projeção porque
o design de produção de Carol Spier lhe fornece um material de qualidade
soberba para filmar, dos cenários aos adereços da direção de arte, em especial,
pelo espectro de cores adoptadas, delicadamente selecionadas para a exaltação
das camadas psicológicas dos temas expostos, também delineados pelos figurinos
de Denise Cronenberg.

Com efeitos especiais igualmente adequados, sector gerenciado
por Gordon J. Smith, “Dead Ringers” faz um trabalho literalmente visceral, não
deixando a devastação física fora da narrativa, em especial nos momentos de insanidade total, como aquela cena onírica e horripilante, carregada de carga simbólica, quando Claire corta
com os dentes o cordão umbilical que une os dois gémeos (trata-se de um pesadelo, é certo, mas que imagem perturbadora essa). Essa “mulher mutante”,
impossibilitada de exercer uma de suas funções biológicas basilares, é o alvo
para a ira de um dos irmãos quando as coisas começam a ficar mais complicadas.
Elliot busca os serviços de um artista local, Anders Wolleck (Stephen Lack),
para a confecção de novos instrumentos cirúrgicos, como se de armas medievais
se tratassem.
Impossibilitados de conseguir dar continuidade ao que fazem
desde a infância, o momento de separação é inevitável, principalmente quando a
actriz catalisadora da ruptura demonstra interesse em Beverly, o que deixa
Elliot envolver-se na sua zona de degradação. Na tentativa de um destruir o
outro, o lado aparentemente vencedor percebe a impossibilidade de sustentar as
suas escolhas. É hora, então, de desarmar e se entregar, num desfecho carregado
de simbologia.
CURIOSIDADES:
- Inicialmente,
Jeremy Irons tinha dois camarins e dois guarda-roupas separados, que ele usava
dependendo do personagem que interpretava no momento. Mas rapidamente percebeu
que um dos objectivos do enredo era a mistura entre os dois personagens. Por
causa disso mudou-se para um único camarim e misturou os guarda-roupas,
encontrando uma "maneira interna" de interpretar cada personagem de
forma diferente, dando a cada uma um "ponto de energia
diferente".
-
Robert De Niro recusou os papéis dos gémeos Mantle porque se sentia
desconfortável interpretando um ginecologista.
- A
Premiere elegeu este filme como um dos "25 filmes mais perigosos" e a
Entertainment Weekly classificou-o como um dos 20
filmes mais assustadores de todos os tempos. Como sempre estas classificações, sobretudo vindas das terras do Tio Sam, são exageradas e fora de contexto. Mas que "Dead Ringers" não é um filme para todos os espíritos, lá isso não é.