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quinta-feira, junho 19, 2025

THE NIGHT OF THE GENERALS (1967)

A NOITE DOS GENERAIS
Um filme de ANATOLE LITVAK



Com Peter O'Toole, Omar Sharif, Tom Courtenay, Donald Pleasence, Joanna Pettet, Philippe Noiret, Charles Gray, Coral Browne, John Gregson, Nigel Stock, Christopher Plummer, etc.


GB - FRANÇA / 148 min / COR / 
16X9 (2.35:1)



Estreia na GB (Londres) a 29/1/1967
Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 2/2/1967



Inspector Morand: «But, murder is the occupation of Generals»
Major Grau: «Then let us say what is admirable on the large scale 
is monstrous on the small. Since we must give medals to mass murderers, 
why not give justice to the small... entrepreneur»

Segunda Guerra Mundial. Varsóvia, 1942; Paris, 1944. No espaço de dois anos duas prostitutas são brutalmente assassinadas e mutiladas nos órgãos genitais, indiciando crimes de índole sexual. Os suspeitos são os mesmos nas duas ocasiões: três generais alemães, comandantes das forças invasoras de Hitler na Europa: Gabler (Charles Gray), um adúltero compulsivo, Kahlenberge (Donald Pleasence), cuja grande preocupação é o derrube do Fuhrer, e Tanz (Peter O’Toole), um militar frio e calculista, considerado um herói na batalha de Estalinegrado. Se no primeiro crime houve apenas uma testemunha inconclusiva (reveladora apenas do facto do assassino ser de facto um general, por causa da risca vermelha das calças do uniforme), já no segundo acompanhamos passo a passo a execução do novo assassínio. Ou seja, a identidade do criminoso é revelada muito antes do final do filme, o que contudo não equivale a um decréscimo de interesse por parte do espectador.

Uma das personagens centrais do filme é o cabo Hartmann (Tom Courtenay, ainda na retina de muitos espectadores por causa do seu excelente desempenho em “Dr. Zhivago”, dois anos antes) que para além de ser a testemunha directa do segundo crime (e que se revelará vital na conclusão da investigação) mantém uma ligação amorosa com a filha de um dos generais suspeitos – Ulrike Gabler, a bonita Joanna Pettet, papel que esteve para ser desempenhado na altura por Marianne Faithfull. Sendo destacado para motorista de Tanz com o intuito de lhe mostrar as vistas de Paris, Hartmann desenvolve uma curiosa relação com o General presenciando a sua face oculta, a insanidade por detrás da aparente normalidade – inesquecíveis as cenas passadas na galeria de arte (o auto-retrato de Van Gogh a funcionar como porta para a loucura), na esplanada, no hotel, no night-club e, finalmente, no local do crime.

Baseado numa novela de Hans Hellmut Kirst (ao que parece inspirada em factos reais), e com argumento assinado por Joseph Kessel e Paul Dehn, “The Night of the Generals” é uma obra bem típica dos anos 60, recheada de belissimos actores entre os quais, e para não destoar do que naquela altura era usual, o excelente Peter O’Toole, que tem aqui mais um dos seus míticos desempenhos. Com duas horas e meia de duração, esta produção franco-inglesa de Sam Spiegel foi bastante popular na altura da estreia por se tratar de um filme carismático que embora situado em cenários do conflito mundial ia um pouco mais além do tradicional filme de guerra. Com uma interventiva banda-sonora assinada por Maurice Jarre (um must daqueles anos) e uma fotografia fortemente apelativa (da autoria de Henri Decae), “The Night of the Generals” oferece ainda uma reconstituição muito credível dos acontecimentos históricos, desde o plot conspirativo para assassinar Adolph Hitler até à ocupação da capital francesa pelo exército nazi.

Outro dos aspectos interessantes do filme é a longevidade da investigação iniciada pelo Major Grau (Omar Sharif, de novo a contracenar com O’Toole, após “Lawrence of Arabia”, cinco anos antes) e depois continuada pelo Inspector Morand (Philippe Noiret), que atravessa os anos da Guerra para se concluir vinte anos depois, já em plena década de sessenta (coincidente, portanto, com o lançamento do filme em 1967). É curioso vermos os mesmos personagens mas agora integrados noutro tipo de realidade. Um novo tempo em que contudo as feridas do passado não foram esquecidas. “The Night of the Generals” é um filme ainda hoje muito agradável de se (re)ver, que paralelamente ao seu interessante enredo transporta em si muita da nostalgia presente nos filmes rodados durante a década de sessenta.







SLEUTH (1972)

AUTÓPSIA DE UM CRIME
Um filme de JOSEPH L. MANKIEWICZ



Com Laurence Olivier e Michael Caine


GB-EUA / 138 m / COR / 16X9 (1.85:1)



Estreia nos EUA (Nova Iorque) em 10712/1972
Estreia no Reino-Unido (Londres) em 12/7/1973
Estreia em Moçambique (L.M.) em 21/7/1973 (teatro Scala)
Estreia em Portugal (Lisboa) em 18/10/1973 (cinema Londres)




Apenas a circunstância de que no mesmo ano de 1973 Marlon Brando seria galardoado pelo Óscar de melhor actor principal pelo seu trabalho no “Padrinho”, é que impediu a Academia de ter cometido mais uma injustiça. Laurence Olivier e Michael Caine foram ambos nomeados para esse mesmo prémio e tanto um quanto outro o merecia. Mas pronto, Brando é Brando e ainda por cima num dos seus melhores e carismáticos papéis no cinema. Não havia mesmo volta a dar.

Mas Caine e Olivier são assim tão bons em “Sleuth”? Melhor, muito melhor do que isso, estão os dois… perfeitos! Até porque não houve lugar para mais ninguém. A peça de Anthony Schaffer, onde o filme se baseia, já tinha limitado a presença de personagens apenas a dois, tal como depois decorreram as exibições de grande sucesso nos palcos da Broadway e do West End londrino (com Anthony Quayle e Keith Baxter). Felizmente que Mankiewicz não se pôs a inventar, seguindo escrupulosamente quer o argumento (escrito também por Schaffer) quer a peça original. E por isso seria preciso falar mais de um Olivier, certo como nunca, e de um Caine, aprendiz de feiticeiro, que, no sentido próprio e figurado, o secunda, uma vez que, no convite que aqui vos deixo para ver este naco de cinema, não cabe falar de tudo. Nem da esposa que, apesar de ausente da imagem, é, afinal a mola motora, o pretexto à volta do qual tudo gira. Em vertigem.

Tendo começado por ser uma peça de teatro, “Sleuth” soube graciosamente desenvencilhar-se desse perigoso antepassado e assumir-se apenas como um veículo cinéfilo. É que muitos dos filmes que têm tal background não conseguem resistir a uma transcrição pura e simples da peça original, sem acrescentar qualquer criatividade. O que, felizmente, não é o caso. Embora algumas sequências “abram” o cenário, ao aventurarem-se no jardim da mansão, carregada de adereços de Andrew Wyke (Olivier), o drama mantém-se confinado essencialmente à sala de estar, onde os dois actores de diferentes gerações se chocam em estilo, temperamento e método. Mas não é "teatro filmado", a mestria de Mankiewicz encarregou-se de tornear tal obstáculo, muito por causa da impecável “mise-en-scène”.

E de que trata a “Autópsia de um Crime” ("História de um Detective" foi o infeliz título com que o filme correu em Moçambique)? Começa por ser um convite (de Wyke a Milo para poderem falar da mulher que se encontra em vias de transitar de um para o outro), mas esse convite, cordial e muito britânico, rapidamente se vai tornar num múltiplo jogo de confrontação, onde a humilhação, recíproca, começa a ditar a lei do mais forte. E quem será o mais forte, quem sairá vencedor? E que significa isso para o espectador? Significa, entre outras coisas, aceder alegremente aos 138 minutos que o filme dura e ao prazer de seguir os mecanismos de uma inteligência que se deleita na criação puramente lúdica e cujas regras são, afinal, as do próprio jogo cinematográfico de Mankiewicz

Cerimónia iniciática, “Sleuth” divide-se em duas partes separadas por uma elipse. Na primeira parte, Milo penetra no labirinto, atraído pela possessão do ouro ligado à possessão fálica da mulher. Profundo equívoco este, o de um cabeleireiro de senhoras que pretende tirar o seu proveito, no lugar improdutivo do puro ludismo, em tomar a nuvem por Juno, a realidade pelo que é apenas aparência de realidade. Manipulando a seu bel-prazer um espaço onde é rei e senhor, Andrew povoa-lo-á de objectos que, por um lado, participam no seu próprio prazer e, por outro, activam o desejo de Milo, conduzindo-o à sua inversão.

Na segunda parte, despojado já do seu universo, depois da prova da humilhação, Milo volta para oficiar, o feitiço vai voltar-se contra o feiticeiro. Mas atenção! A qualidade do seu jogo é diferente da de Andrew, as regras de ambos não são idênticas. Milo é um batoteiro, o seu jogo é viciado pela presença obsessiva dos seus compromissos com o estatuto social de que faz parte. Entre as duas partes, a elipse de que se falou – espaço da descida aos abismos da humilhação/inversão do desejo, e da ascese que se lhe segue. Ou de como “Sleuth” é a noite do amor: primeiro a atracção, depois a sedução e a progressiva revelação; por fim, a nobilíssima visione: entrega/posse em que tudo se joga, os pressentimentos, enfim a morte – supremo orgasmo.



CURIOSIDADES:

- Sir Michael Caine estava um pouco constragido por estar a trabalhar com Lorde Laurence Olivier e não sabia como se lhe deveria dirigir. Perguntou e Olivier respondeu-lhe: «Bem, eu sou Lorde Olivier e você é o Sr. Michael Caine. Mas isso é só no princípio. A partir de agora eu sou o Larry e o senhor é o Mike

- O riso vindo do "idiota" Jolly Jack Tar é o de Laurence Olivier.

- Sir Michael Caine foi a terceira escolha para o papel de Milo Tindle, depois de Albert Finney (que foi considerado muito rechonchudo) e Sir Alan Bates (que recusou o papel).

- A produção teatral original de "Sleuth" estreou-se na Broadway a 12 de Novembro de 1970. Os protagonistas foram representados por Anthony Quayle como Andrew e Keith Baxter como Milo, teve mil duzentas e vinte e duas apresentações e ganhou o prémio Tony de melhor peça em 1971.

- Laurence Olivier ficou tão impressionado com a actuação de Michael Caine durante a cena em que o personagem de Caine chora histericamente que disse: «Achei que tinha um assistente, Michael. Vejo que tenho um parceiro.» Caine expressou mais tarde que considerou esse o maior elogio que recebeu desde que se tornou actor profissional.

- Trinta e cinco anos depois, em 2007, Kenneth Branagh realizou a remake do filme, com Caine no papel de Andrew e Jude Law no de Milo.

terça-feira, junho 17, 2025

L'EMMERDEUR (1973)

O CHATO
Um Filme de ÉDOUARD MOLINARO



Com Lino Ventura, Jacques Brel, Caroline Cellier, Jean-Pierre Darras, Nino Castelnuovo, Angela Cardile, etc.

FRANÇA-ITÁLIA / 85 min / COR / 
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA a 20/9/1973
Estreia nos EUA a 31/7/1975


«Quando aceitei participar no filme não conhecia sequer o argumento. Mas Molinaro e Ventura, dois bons amigos, perguntaram-me se o queria fazer com eles. Disse logo que sim, porque para mim o mais importante são as pessoas com quem trabalho». Esta declaração de Jacques Brel dizia respeito à sua participação em "L’Emmerdeur", uma história baseada na peça "Le Contrat", de Francis Véber (responsável também pelo argumento), que coloca em confronto dois universos completamente distintos, dois homens sem qualquer tipo de afinidade entre eles. Tal disparidade é como introduzir o vaudeville dentro de um film noir. Uma missão que poderia parecer impossível à partida, mas que resulta em cheio quando o filme se estreia, em Setembro de 1973. A crítica da altura é unânime em considerar que em "L’Emmerdeur" Jacques Brel tem o melhor papel da sua carreira. Podia ler-se no jornal La Libre Belgique de 11 de Outubro, por exemplo: «Le film doit beaucoup à l’interprétation de Jacques Brel, qui a trouvé ici son meilleur rôle à l’écran et nous donne certainement son interprétation la plus attachante. Notre compatriote incarne avec énormément de présence et de sensibilité, le personnage du “crampon”, être tout ensemble minable et insupportable, naïf et rusé, misogyne et tendre; il faut dire que ce personnage lui sied comme un gant: l’homme semble s’y être projeté autant que le comédien». Enorme sucesso de público também, "L’Emmerdeur" faria 600.000 entradas apenas em Paris, na altura da estreia.


Mas recordemos o enredo principal: o filme começa com um atentado à vida de Louis Randoni, uma testemunha importante de um julgamento; mas a explosão do seu veículo mata a pessoa errada. Entra em cena Ralf Milan (Lino Ventura), um assassino contratado para endireitar as coisas. Depois de saldar as contas com o bombista, o passo seguinte é eliminar a testemunha incómoda. Com esse objectivo, Milan instala-se num hotel de Montpellier, com janela para o tribunal onde Randoni irá prestar declarações. Entretanto, chega também ao mesmo hotel François Pignon (Jacques Brel), que se instala no quarto vizinho. Pignon atravessa uma depressão por ter sido abandonado pela mulher e o seu intuito é apenas um: suicidar-se. Tenta enforcar-se na casa-de-banho, mas o cano cede, provocando uma fuga de água. O garçon do hotel (Nino Castelnuovo) quer chamar a polícia, o que contraria os propósitos de monsieur Milan, que promete tomar conta de Pignon. Mas este não desiste da ideia de suicídio, o que irá ocasionar uma série de transtornos ao plano arquitectado para eliminar a testemunha.


"L’Emmerdeur" é uma comédia delirante, que fecha com chave de ouro a carreira de Brel no cinema, a ponto de hoje o título ser imediatamente evocativo da sua imagem e da excelência do desempenho da sua personagem, um Pignon duzentos por cento prestativo que acaba por fazer desabar toda a fortaleza granítica de um assasino profissional, o duro monsieur Milan, personagem caracterizada também de maneira fabulosa por esse grande actor que foi Lino Ventura. Ao lado deles é justo destacar ainda Jean-Pierre Darras, no papel do novo amante da mulher (Caroline Cellier) de Pignon, e o já mencionado Nino Castelnuovo, actor que vimos em filmes bastante famosos, como "Rocco e Seus Irmãos" ou "Les Parapluies de Cherbourg". Mas são as impressionantes prestações de Brel e Ventura que conferem a "L' Emmerdeur" um lugar de destaque em toda a história da comédia no Cinema.


CURIOSIDADES:

- Juntamente com François Rauber, Brel compôs dois temas para o filme: "La Scocciatrice (L' Emmerdeuse)" e "Knokke-Le-Zoute"

- Édouard Molinaro aparece como barman na cafetaria. E há um momento em que tem um LP de Brel nas mãos.

- Em 1981 Billy Wilder filmaria nos EUA a remake do filme, "Buddy Buddy", com Jack Lemmon, no papel do suicida e com Walter Matthau no do assassino.


DEAD RINGERS (1988)

IRMÃOS INSEPARÁVEIS
Um filme de DAVID CRONENBERG

 

Com Jeremy Irons, Geneviève Bujold, Heidi Von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas, Stephen Lack, etc.

 

EUA-CANADÁ / 116 m / COR / 
16x9 (1.85:1)

 

Estreia no Canadá (Festival de Toronto) a 8/9/1988
Estreia nos EUA a 23/9/1988
Estreia em Portugal (Fantasporto) em Fevereiro de 1989

 


“Dead Ringers / Irmãos Inseparáveis” é, ainda hoje, um dos mais prodigiosos filmes de David Cronenberg, que nos faz atravessar um demencial universo de horror, com Jeremy Irons num dos maiores desafios da sua carreira. Efectivamente, o filme conduz-nos a uma impressionante incursão pelos domínios da demência, através da acidentada trajectória de dois irmãos gémeos mundialmente famosos, Beverly e Elliott Mantle, ambos fascinados e obcecados pelo universo feminino, ambos prestigiados ginecologistas e ambos incapazes de resistir à atracção pela sexualidade mais bizarra. Um filme tão impressionante e perturbador quanto sofisticado e deslumbrante, na sua atmosfera de drama de horror e na sua prodigiosa execução técnica e artística.

Cronenberg criou um novo jogo de impossíveis combinações: sadomasoquismo e ginecologia, angústia existencial e toxicodependência criativa, sedução e mutilação. Jeremy Irons, não é demais dizê-lo, é absolutamente deslumbrante no seu duplo jogo de espelhos consigo próprio que constitui, sem dúvida, uma das mais complexas interpretações de toda a sua carreira. Foi distinguido como o melhor actor do Fantasporto de 1989, depois de ter conquistado o troféu atribuído pela Associação de críticos de Nova Iorque e de Chicago, para além de múltiplas nomeações em diversos festivais de cinema. Também Cronenberg foi distinguido um pouco por todo o lado, arrecadando os prémios do Festival de Avoriaz e da Associação de críticos de Los Angeles. 



Em 1967, no Massachusetts, os irmãos gémeos canadianos, Beverly e Elliott Mantle, terminam com louvor a sua especialização em ginecologia. Em Toronto, dez anos depois, os irmãos Mantle têm uma sofisticada clínica, onde Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz, recebe a perturbadora notícia sobre a impossibilidade de poder engravidar. Claire cai numa depressão de contornos masoquistas e deixa-se arrastar para a toxicodependência. Mais tarde, envolve-se numa relação amorosa com o arrogante Elliott que encoraja o irmão a tomar o seu lugar sem que Claire perceba a troca. Porém, o tímido Beverly apaixona-se por Claire e recusa-se a partilhar confidências com o irmão sobre a sua relação. Claire descobre, furiosa, que há dois irmãos gémeos e que teve relações com ambos, mas volta a encontrar-se com Beverly que arrasta para a toxicodependência. Elliott decide encarregar-se da desintoxicação do irmão, e ambos embarcam numa alucinante viagem demencial. Apesar de não serem gémeos siameses funcionam como tal, acabando o filme com uma cena assustadora na qual, com o seu consentimento, Beverly desmembra o irmão numa tentativa de cortar as suas ligações físicas (que na verdade não existem). É uma espécie de pacto de suicídio, sendo curiosamente um dos finais menos derrotistas de Cronenberg (ainda que este advogue que nenhum final dos seus filmes seja derrotista).



David Cronenberg abordou neste filme um tema que é já uma constante em toda a sua extensa e densa carreira cinematográfica: a multiplicidade de questões que envolvem a construção de identidade dos seres humanos e a profundidade psicológica de seus personagens diante das metamorfoses físicas e comportamentais que lhes surgem à medida que evoluem dentro da dinâmica de suas vidas, mergulhadas num tecido social extenso. Guiado pelo argumento escrito em parceria com Norman Snider, inspirado no livro de Bari Wood e Jack Geasland, Cronenberg apresenta aos espectadores a trajectória de Bev e Elliot, gémeos que deabulam de maneira brilhante pela narrativa, graças ao desempenho dramático e eficiente de Jeremy Irons. Curioso que passado algum tempo se consiga distinguir um irmão do outro, apenas com a representação que o genial actor fez dos dois personagens: Elliot é o lado calculista, dominante, agressivo, narcisista e ameaçador da “entidade” simbolizada por esse duplo que se apresenta unificado. Beverly é o irmão mais inseguro, educado, gentil, calmo, uma espécie de sombra do lado obsessivo e mais prepotente do outro. Os dois irmãos espelham as vidas um do outro e, ao longo do filme, os traços que os pareciam dividir fundem-se, ao ponto de no fim ser difícil diferenciá-los. Tornaram-se pois, numa só pessoa (mais cônjugues que, de facto, irmãos). 



Já adultos, os gémeos comunicam e circulam socialmente de maneira muito parecida. Isso é o que permite a troca de parceiras sexuais e as aparições públicas onde um se passa pelo outro, de acordo com os afazeres e preferências de cada um. Mas tudo muda com a chegada de Claire Niveau, uma famosa actriz que decide realizar um tratamento na clínica dos irmãos, por causa de questões complicadas do seu útero. A breve trecho Claire vê-se envolvida naquele estranho triângulo a três, tornando-se a responsável pela inesperada, mas inevitável ruptura que trará consequências catastróficas para todos os envolvidos nesta trama complexa sobre identidade, obsessões, desejos e paixões, que levam os perotagonistas às últimas consequências. Adivinha-se, portanto, um desfecho trágico e nada hollywoodiano orquestrado por David Cronenberg.




 

Sempre acompanhados pela pomposa trilha sonora de Howard Shore, parceiro constante do cineasta, os personagens circulam pelo filme acompanhados pelos movimentos e quadros sofisticados da direção de fotografia peculiar de Peter Suschitzky, eficiente por valorizar cada frame dos enquadramentos, não sendo apenas mais um amontoado de imagens genéricas. Iluminado de maneira a ressaltar os dramas que envolvem cada figura, o sector ganha maior projeção porque o design de produção de Carol Spier lhe fornece um material de qualidade soberba para filmar, dos cenários aos adereços da direção de arte, em especial, pelo espectro de cores adoptadas, delicadamente selecionadas para a exaltação das camadas psicológicas dos temas expostos, também delineados pelos figurinos de Denise Cronenberg.



Com efeitos especiais igualmente adequados, sector gerenciado por Gordon J. Smith“Dead Ringers” faz um trabalho literalmente visceral, não deixando a devastação física fora da narrativa, em especial nos momentos de insanidade total, como aquela cena onírica e horripilante, carregada de carga simbólica, quando Claire corta com os dentes o cordão umbilical que une os dois gémeos (trata-se de um pesadelo, é certo, mas que imagem perturbadora essa). Essa “mulher mutante”, impossibilitada de exercer uma de suas funções biológicas basilares, é o alvo para a ira de um dos irmãos quando as coisas começam a ficar mais complicadas. Elliot busca os serviços de um artista local, Anders Wolleck (Stephen Lack), para a confecção de novos instrumentos cirúrgicos, como se de armas medievais se tratassem.

Impossibilitados de conseguir dar continuidade ao que fazem desde a infância, o momento de separação é inevitável, principalmente quando a actriz catalisadora da ruptura demonstra interesse em Beverly, o que deixa Elliot envolver-se na sua zona de degradação. Na tentativa de um destruir o outro, o lado aparentemente vencedor percebe a impossibilidade de sustentar as suas escolhas. É hora, então, de desarmar e se entregar, num desfecho carregado de simbologia.

 



CURIOSIDADES:

 

- Inicialmente, Jeremy Irons tinha dois camarins e dois guarda-roupas separados, que ele usava dependendo do personagem que interpretava no momento. Mas rapidamente percebeu que um dos objectivos do enredo era a mistura entre os dois personagens. Por causa disso mudou-se para um único camarim e misturou os guarda-roupas, encontrando uma "maneira interna" de interpretar cada personagem de forma diferente, dando a cada uma um "ponto de energia diferente".

 

- Robert De Niro recusou os papéis dos gémeos Mantle porque se sentia desconfortável interpretando um ginecologista.

 

- A Premiere elegeu este filme como um dos "25 filmes mais perigosos" e a Entertainment Weekly classificou-o como um dos 20 filmes mais assustadores de todos os tempos. Como sempre estas classificações, sobretudo vindas das terras do Tio Sam, são exageradas e fora de contexto. Mas que "Dead Ringers" não é um filme para todos os espíritos, lá isso não é.