quinta-feira, outubro 31, 2013

Ms. 45: ANGEL OF VENGEANCE (1981)

VINGANÇA DE UMA MULHER
Um filme de ABEL FERRARA



Com Zoë Tamerlis, Albert Sinkys, Darlene Stuto, Helen McGara, Nike Zachmanoglou, Jimmy Laine (Abel Ferrara), etc.

EUA / 80 min / COR / 4X3 (1.37:1)

Estreado nos EUA a 24/4/1981
Estreado em PORTUGAL a 13/11/1981
(Lisboa, cinema Odeon)



She was abused and violated. It will never happen again!

Mais um filme em que o móbil central é o da vingança de uma mulher. À semelhança da história de “I Spit On Your Grave”, a premissa em “Ms 45: Angel of Vengeance” é também uma dupla violação exercida sobre a mesma mulher (fora e dentro de portas). Mas as semelhanças ficam-se por aqui, como adiante se verá. Thana (interpretada pela actriz americana Zoë Tamerlis – ou Lund – nascida em Nova Iorque, a 9/2/1962 de mãe sueca e pai romeno; e falecida em Paris, a 16/4/1999), é uma costureira muda, empregada num atelier nova-iorquino, que num dia azarento é assaltada e violada num beco da cidade; como se tal não bastasse, ao chegar a casa sofre novo assédio sexual por parte de um assaltante que se consegue introduzir no seu apartamento. Do primeiro homem (interpretado pelo próprio Abel Ferrara) não mais se ouvirá falar; mas o segundo acaba morto às mãos de Thana (nome derivado do grego Thanatos, que significa morte), a qual, para se defender, golpeia-o na cabeça com um ferro de engomar. Para se desembaraçar do corpo corta-o em pedaços, colocando-os em diversos sacos de plástico no frigorífico para depois, pouco a pouco, os ir distribuindo pelos caixotes de lixo da cidade.

O argumento prossegue no mesmo tom, centrando-se em episódios mais ou menos sangrentos e traçando uma evolução psicológica demasiado galopante para a protagonista, que de jovem-caldinho-sem-sal passa em apenas meia dúzia de dias a mulher fatal, liquidando uma série de homens que de algum modo se lhe atravessam no caminho, lembrando-lhe não só os actos de que foi vítima mas sobretudo fazendo-a sentir que o seu estado psíquico se está a descontrolar rapidamente. Thana mata para se proteger a ela própria - não tanto como defesa de um qualquer acto iminente mas sim resguardando-se antecipadamente de uma agressão que a sua mente, cada vez mais perturbada, a faz acreditar ser de novo possível. Ou seja, enquanto que em “I Spit On Your Grave” tínhamos uma vingança directa sobre os responsáveis pelas violações, aqui essa vingança exerce-se indiscriminadamente. Não tem um objectivo particular, antes dispara, literalmente, em todas as direcções, percorrendo por várias vezes um caminho que vai da solidão do apartamento de Thana à hostilidade sempre presente nas ruas da cidade, até se consumir, já mergulhada em absoluta irracionalidade, na festa final do halloween.

Abel Ferrara, cineasta independente nascido na Bronx (em 19/7/1951), consegue ultrapassar o argumento um tanto ou quanto linear e superficial, por vezes incongruente, que Nicholas St. John, seu habitual colaborador, lhe atirou para as mãos; e fá-lo de forma convincente, tornando-o num  filme cheio de interesse, por vezes mesmo cativante. O thriller aparentemente banal que “Ms 45: Angel of Vengeance” poderia ter sido, é moldado superiormente por Ferrara, que consegue incutir-lhe um estilo muito próprio, dominando eficazmente o ritmo, os ambientes ou a direcção de actores (a grande maioria não ultrapassa uma confragedora mediocridade, mas são exemplarmente resgatados pela sobriedade e segurança do realizador).

“Ms 45: Angel of Vengeance” é estilisticamente uma obra deveras curiosa e muito sugestiva (Quentin Tarantino que o diga), filmada como se de um filme fantástico se tratasse (Thana faz lembrar uma personagem de banda desenhada), tendo por cenário natural as ruas de Nova Iorque, a um tempo mórbidas e perigosas, como poucos cineastas tiveram o ensejo de as mostrar no grande écran. Por outro lado, Ferrara consegue operar uma transformação vampírica na sua heroína, para quem o crime se torna numa autêntica droga. Acompanhamos a sua descida aos infernos passo a passo (a câmara raramente se afasta dela), assistimos à sua degeneração num monstro frio e mecânico que espalha um ódio visceral pelo género homem com a ajuda de um símbolo fálico por excelência – aquele revólver 45, que paradoxalmente a liberta da timidez inicial para descobrir todo um poder de sedução até então adormecido.

Não se pode falar deste filme mítico sem invocar a mulher por detrás da sua trágica heroína – Zoë Lund, actriz, compositora, pianista, modelo, romancista, argumentista (seria a co-autora de outro filme de Ferrara, “Bad Lieutenant”) e activista política, que infelizmente morreu cedo demais, aos 37 anos, vitimada por uma overdose de heroína. Com uma filmografia escassa (apenas 6 longa-metragens), Zoë Lund, conhecida também como Zoë Tamerlis, tornou-se uma das figuras inesquecíveis do cinema fantástico. A sua beleza, frágil e serena, ficará para sempre ligada às personagens a que deu vida.




LOBBY CARDS:

quarta-feira, outubro 30, 2013

LOVE OBJECT (2003)

OLHOS DA MORTE
Um Filme de ROBERT PARIGI



Com Desmond Harrington, Melissa Sagemiller, Udo Kier, Rip Torn, Robert Bagnell, etc.

EUA / 88 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 5/4/2003 
(Philadelphia International Film Festival)
Estreia em FRANÇA a 16/5/2003 
(Festival de Cannes)


Some people are just made for each other”

Primeiro e único filme até à data deste produtor televisivo (autor também do argumento), “Love Object” revelou-se uma agradável surpresa numa das minhas últimas noites de insónia. Kenneth Winslow (Desmond Harrington) é um tímido escritor de manuais para consumidores, daqueles que quase ninguém lê mas que invariavelmente acompanham os mais diversos produtos. A sua pouca-à-vontade com o sexo oposto leva-o a ser alvo da chacota dos colegas mais próximos, que inclusivé o aconselham a comprar uma boneca de silicone para se entreter. Ken não se faz rogado e encomenda num site da internet uma “Nikki”, cujas características básicas (altura, olhos, boca, cabelos, etc.) ele previamente escolheu. Sendo anti-social por natureza, Ken vê naquele novo brinquedo a oportunidade de estabelecer uma relação de afectividade, quer a nível sexual quer a nível psicológico. Só que essa relação se vai tornando cada vez mais obsessiva, perigosamente obsessiva...


No emprego é-lhe imposta uma nova colaboradora, Lisa (Melissa Sagemiller), que de início desdenha mas por quem, a pouco e pouco, vai desenvolvendo uma relação amorosa - uma novidade inesperada, para a qual nunca se sentiu particularmente motivado. Rapidamente Ken irá sentir-se dividido entre Nikki e Lisa, começando a moldar esta última de acordo com os parâmetros através dos quais definiu a sua relação com a boneca de silicone. E vice-versa, ou seja, modificando o aspecto de Nikki à medida que vai descobrindo em Lisa os atributos que mais o atraem. Ken vai assim deixando-se alienar nesse triângulo amoroso, inusitado e perverso, começando a acusar sinais, cada vez mais inquietantes, de insanidade mental.


Premiado em diversos festivais de cinema, “Love Object” é um filme estranho, uma parábola inquietante sobe a solidão e a obsessão que fazem parte da vida de todos nós, em maior ou menor escala. A originalidade do argumento e a realização segura de Parigi (que gastou pouco mais de 700 mil dólares em apenas 18 dias na rodagem) irá transformá-lo a curto prazo num genuíno cult-movie (se é que os dez anos entretanto decorridos não se encarregaram já disso), a que não falta sequer um inesperado twist final. Procurem-no num canal de cinema da TV por cabo, que não se irão arrepender. 

I SPIT ON YOUR GRAVE (1978)

A VINGANÇA DE JENNIFER
Um filme de MEIR ZARCHI


Com Camille Keaton, Eron Tabor, Richard Pace, Anthony Nichols, Gunter Kleemann, etc.

EUA / 101 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia em França a 23/5/1978
(Festival de Cannes)
Estreia nos EUA a 22/11/1978



Johnny: [after being mutilated] «It won't stop bleeding!»

Um filme banido em diversos países na altura da sua estreia, vilipendiado por críticos judiciosos e cinematograficamente correctos, detestado por inúmeras ligas feministas em todo o mundo. O porquê de tanto alarido era, depreende-se, a exploração de uma certa violência gráfica e diversas cenas de nudez. Mas visto hoje, por entre tantos excessos que povoam os écrans das salas de cinema e dos nossos computadores (as séries “Saw” e “Hostel” são apenas dois dos exemplos mais conhecidos), este “I Spit On Your Grave” arrisca-se a ser um cordeirinho entre lobos vorazes. Mas um cordeirinho ainda incómodo, cheio de genica e orgulhoso de ostentar uma coleira onde se pode ler “filme de culto obrigatório”.

Jennifer Hills (a belissima Camille Keaton, neta do cómico Buster Keaton) é uma escritora em início de carreira que aluga uma casa isolada no campo, no estado de Nova Iorque, afim de se poder concentrar no seu primeiro romance durante as férias de Verão. Inevitavelmente, Jennifer acaba por atraír a atenção masculina local, protagonizada por Johnny (Eron Tabor), o dono de uma estação de serviço e dos seus três habituais comparsas, o mais novo dos quais, Matthew (Richard Pace), um atrasado mental que trabalha no supermercado da zona. Os acontecimentos precipitam-se e Jennifer acaba violada e espancada de um modo brutal. Primeiro no bosque que circunda a casa, depois no interior da mesma, onde é deixada agonizante. Matthew é incumbido de voltar atrás para acabar de vez com Jennifer, missão que não consegue cumprir, ocultando esse facto dos outros três homens. Segue-se a recuperação da jovem e o seu plano, metódico e friamente premeditado, para usufruir de uma vingança pessoal sobre todos quantos lhe infligiram as crueis sevícias e humilhações.

“I Spit On Your Grave” é um filme tosco, de baixo orçamento (não tem sequer direito a uma trilha musical), de cariz semi-documental, filmado de um modo simples e linear, quase espartano, e inspirado com toda a probabilidade em  outros dois filmes do mesmo género, “Deliverance”, e “The Last House On The Left”, ambos realizados seis anos antes, em 1972. Aqui não existem efeitos especiais ou movimentos estapafúrdios de câmara (infelizmente tão em voga nos dias que correm), e talvez seja essa a principal razão pela qual uma vez visto, o filme não nos sai tão cedo da memória. “I Spit On Your Grave” é portanto o tipo de produção que jamais seria levada a cabo por um grande estúdio de cinema. E é também essa sua faceta independente que contribuíu para o seu sucesso (que começou logo em 1978, nos Festivais de Cannes e de Stiges), tornando-se com o passar dos anos numa referência fundamental do género. Nele não encontramos nada de sobrenatural, o seu horror deriva da sua alarmante vulgaridade, de ser algo possível de acontecer no dia-a-dia de cada um de nós. Os agressores não são monstros nem sequer psicopatas, apenas pessoas comuns que, de um momento para outro, embarcam numa série de atitudes violentas e repentistas.

“I Spit On Your Grave” não pretende emitir juízos de valor, não quer julgar ninguém. Nem a atitude dos 4 homens na primeira parte do filme nem muito menos a posição revanchista de Jennifer na segunda (embora dificilmente não tomemos o partido dela, depois de toda a carga de violência a que foi sujeita). Meir Zarchi, o realizador e tambem responsável pelo argumento (e que pouco tempo depois se casou com a actriz), limita-se a contar a história de uma vingança, nua e crua, sem rodriguinhos e sem se afastar do essencial. Um aspecto curioso é o poder de aliciamento de Jennifer, que consegue facilmente seduzir os seus algozes, para depois os aniquilar sem dó nem piedade, qual anjo exterminador ou fêmea insectívora que devora os seus parceiros depois do acto sexual. No caso de “I Spit On Your Grave” os 4 homens não são “devorados”, mas todos eles sucumbem a destinos nada invejáveis: um por enforcamento, outro castrado numa banheira (talvez a cena mais chocante do filme – pelo menos para os homens – apesar de nada ser mostrado, apenas intuído), o terceiro morto à machadada e o último destroçado pela hélice de um barco.

Como já vem sendo hábito, foi feita em 2010 uma nova versão do filme (não vi, nem tenciono ver), que obviamente nunca poderá ocupar o lugar deste original, mas que teve o mérito de originar várias reedições do filme de 1978. Em Inglaterra saíu mesmo uma edição luxuosa – imagine-se! – contendo o DVD, o Blu-ray, um poster e um album de fotografias e ensaios sobre o filme. Infelizmente trata-se de uma versão remontada, onde foram cortados vários minutos das cenas consideradas mais explícitas. Nos Estados Unidos existem duas versões, uma classificada como “R” (que inclui de igual modo diversos cortes) e outra classificada como “Unrated”. É esta última, da editora Anchor Bay, a única versão integral do filme, com os 101 minutos originais, que deverá ser adquirida por todos os coleccionadores.

CURIOSIDADES:

O filme estreou-se com o título “Day of the Woman”. Devido ao pouco sucesso obtido nos EUA, o distribuidor alterou-lhe o nome três anos depois, quando procedeu ao seu relançamento. Nessa altura, a campanha movida por alguns críticos (com Roger Ebert à cabeça, que não se cansava de vociferar contra o filme nos meios de comunicação) veio a originar uma grande publicidade (o fruto proibido é sempre o mais desejado…) e a consequente afluência de espectadores às salas.

No poster original de lançamento do filme podia ler-se: "This woman has just cut, chopped, broken and burned five men beyond recognition". O desenhador gráfico nunca devia ter visto o filme, uma vez que se trata apenas de 4 homens e nenhum deles foi queimado pela protagonista.





A casa do filme pertencia na altura a Yuri Haviv, o director de fotografia.

Camille Keaton não teve qualquer problema em aparecer completamente nua em diversas cenas (que são bastantes ao longo do filme), mas o facto de ter de correr descalça no bosque e ser constantemente atacada por mosquitos chegou a levá-la ao hospital para tratamento.

domingo, outubro 27, 2013

AVENTURAS EM TOM CLÁSSICO

De que falamos quando falamos de cinema independente americano? Em boa verdade, sabemos que se trata de um território que, com os anos, deixou de ter fronteiras estáveis. Mais do que isso: mesmo não esquecendo que a maior parte dos blockbusters de super-heróis se tornaram empreendimentos profundamente conservadores e repetitivos, não faz sentido supor que a capacidade de inovação e risco, inclusive no plano tecnológico, esteja arredada dos grandes estúdios (para nos ficarmos por um exemplo próximo, lembremos as muitas maravilhas de um título como "Gravidade", de Alfonso Cuarón).


Dir-se-ia que os independentes se passaram a distinguir menos por qualquer linha temática ou princípio estético, e mais pela vulnerabilidade do seu lugar no mercado. Dito de outro modo: alguns títulos não protegidos pelo emblema de um grande estúdio continuam a ser penalizados na sua chegada às salas escuras. Exemplo? O magnífico "Mud / Fuga", de Jeff Nichols, revelado no Festival de Cannes de 2012, lançado agora, cerca de um ano e meio depois, nas salas portuguesas.


Escusado será dizer que a distância temporal em nada diminui as qualidades dos filmes. O certo é que, num tempo em que a aceleração dos ritmos de consumo pode ser destruidora (e não só para o cinema...), seria uma pena que um objecto de tão delicada inteligência não conseguisse tocar os seus espectadores potenciais. Estamos, afinal, perante um caso exemplar de realismo cruzado com a sedução da fábula: a aventura dos dois rapazes que criam laços de cumplicidade com um foragido possui o fôlego dramático de um belo conto de aprendizagem. Mesmo que o possamos considerar um genuíno produto da produção independente, as suas raízes estão no mais puro classicismo de Hollywood.
(João Lopes in Diário de Notícias, 27/10/2013)

COM PENA MINHA, NÃO CHEGUEI A GANGSTER

Não tenho nenhuma vontade de morrer. Se pudesse não morrer, não morria. Mas se fosse um amigo, o meu melhor amigo, a matar-me, talvez não me importasse de morrer. Já me devia ter passado estra treta de ver filmes e pensar que vão acontecer-me as mesmas coisas. "Stand Up Guys" é um filme de velhos gangsters e eu, velho embora, com muita pena minha, não cheguei a gangster.


O filme começa com Al Pacino a sair da cadeia. À espera, Christopher Walken, de pé, junto ao carro. Não escondem os 70 anos que têm em cada perna. Olham-se, aproximam-se, abraçam-se com a delicadeza, a hostilidade amiga e a lamechice que a idade proíbe e autoriza. Só lhes falta beijarem-se. São duas sombras que se amam e se confiam. Num abraço, entregam as saudades que tiveram um do outro.



Pacino passou 28 anos na cadeia. Antes, com Walken, assaltou, matou, viveram. Um reencontro destes merece festa e farra. Pacino quer espantar a perda, com uma tonelada de alegria, coca, álcool e sexo. Walken faz a mesma coisa, mas com um casaco de tristeza, dois versos elegíacos nos bolsos das calças. Al Pacino está a divertir-se de mais. E ele sabe porquê. A sua morte está anunciada e encomendada. O mau do filme, que é mesmo mau, hipóstase de todo o mal, culpa-o da morte do filho, no tiroteio que levou Pacino à prisão. Na cadeia, pensou que o matariam logo, até perceber que, com crueldade assassina, o fariam passar 28 anos a temer a própria sombra, mas seria já livre que alguém o iria liquidar.


Queria dizer-vos que pouco me interessa se "Stand Up Guys" é um bom ou mau filme. A minha especialidade, agora, é uma especialidade de velhos: pequeninas cenas. E, mais de meia hora de filme, entre sorrisos e breve passagem pelas brasas, cai-me no colo uma cena sublime. Estão sentados, num restaurante. A luz, as espessas cores nocturnas, foram roubadas à pintura de Hopper. Derrama-se da cabeça de Pacino uma serenidade cardinalícia. Quer saber: «Quem é que vai fazer a coisa?» «Qual coisa?», diz o seráfico Walken. «Sabes muito bem...» E evitando o desconforto do amigo, diz-lhe, num murmúrio, o que já adivinhou: «És tu?» Diz-lhe isso, meigo, quase a sorrir e insiste: «C'mon man, say it's you!»


Os olhos de Walken piscam e a voz sai-lhe linda, concordante, mais em sol do que em dó, soltando um «It's me» que bem podia ser um «I love you». A câmara fica na cara dele: não se mexe um milímetro daquela pele, olhos parados no tempo, boca ligeiramente entreaberta. Alívio amargo-doce no rosto de Pacino. Estamos ali, campo, contracampo, do grande plano da cara de um para o grande plano da cara do outro. Está ali a morte sentada e ouve-se um silêncio de 10,15 segundos. Podia criar-se o mundo, um big bang, nesse silêncio. Gostava de morrer assim, como Pacino, em boas mãos.
(Manuel S. Fonseca in revista Atual, Expresso, 26/10/2013)

sexta-feira, outubro 25, 2013

GRAVITY (2013)

GRAVIDADE
Um Filme de ALFONSO CUARÓN





Com Sandra Bullock e George Clooney

EUA / 91 min / COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia em ITÁLIA a 28/8/2013 
(Festival de Veneza)
Estreia nos EUA a 31/8/2013 
(Festival de Telluride)
Estreia em PORTUGAL a 10/10/2013


Ryan Stone: «It’s time to stop driving. It’s time to go home»


"Gravity" tem sido, na minha opinião, sobre-avaliado pela crítica especializada. A sua inclusão apressada no panteão das "obras-primas" da Sétima Arte acaba por gorar expectativas e prejudicar o próprio filme, que até tem os seus méritos. Compará-lo, por exemplo, a "2001, Odisseia no Espaço" revela uma grande falta de memória, que urge recuperar numa (re)visão urgente da obra genial de Kubrick. Ou seja, existem acontecimentos que, por direito próprio, passam a constituir marcos históricos na vida da humanidade e há outros que não, muito embora também possam permanecer nas nossas memórias pelas melhores (ou piores) razões.  Em relação aos primeiros haverá sempre o "antes de" e o "depois de": Cristo no mundo católico, a II Guerra Mundial na história da Europa, os Beatles na música pop ou, mais recentemente, o Mourinho no futebol, são alguns desses marcos. Tal como o "2001" do Kubrick o é no cinema, extravasando até o género em que se insere (ficção-científica). Pelo contrário, duvido muito que este "Gravity" venha a constituir-se num qualquer marco do cinema, apesar de, repito, ser um filme de méritos inquestionáveis.


Um desses méritos é ter sabido economizar o tempo de projecção. Tudo o que ultrapassasse a hora e meia que dura o filme seria excessivo e levaria inevitavelmente a uma grande sensaboria. Mesmo assim, essa sensaboria existe na primeira parte do filme, onde somos introduzidos às duas únicas personagens, o comandante Matt Kowalski (George Clooney, a fazer uma vez mais de George Clooney) e a Drª Ryan Stone (Sandra Bullock, num feliz regresso à credibilidade como actriz dramática). E se a primeira é uma personagem descartável, a segunda é aquela em torno da qual todo o filme gira. Literalmente.


No prólogo de "Gravity" (extenso em demasia) vamos então conhecer os dois astronautas do filme, na missão de recuperação de um telescópio espacial (o Hubble): ela uma engenheira especializada, ele um piloto veterano em fim de carreira. Um acidente distante em que um míssel russo destrói um satélite, vai originar uma chuva de destroços que os irá atingir a curto prazo e a alta velocidade. A restante tripulação - que não chegamos a conhecer - morre em consequência dos impactos desses destroços (a sequência mais espectacular de todo o filme, embora esteja longe de ser a minha preferida. Essa só acontece no final, em local já bem terreno). Bullock e Clooney passam assim a ser os únicos sobreviventes do embate.


Aos poucos vamos conhecendo alguns aspectos das personalidades de ambos, sobretudo da Drª Stone, cuja importância no desenrolar do filme passará a ser central, até porque acaba por ficar completamente sózinha na vastidão do espaço. Ela aceitou aquela missão para tentar esquecer a morte recente da filha e fazer do universo, silencioso e calmo, uma terapia para a sua perda. Quando a sucessão dos eventos parece prenunciar o fim da sua vida, Ryan, depois de um período de desalento, consegue arranjar a determinação necessária para regressar ao planeta Terra, local onde de facto a vida existe, uma vida que merece ser vivida, apesar de todos os desgostos e contrariedades que nos levam a sucumbir, a deixarmo-nos levar. «Don't let go...»


É na meia-hora final que "Gravity" atinge o seu esplendor. A tenacidade de Ryan, a reentrada na atmosfera terrestre da nave, que se vai aos poucos desintegrando (é curioso notar que as trajectórias dos pedaços incandescentes apresentam uma geometria que faz lembrar o caminho dos espermatozoides na fecundação do ovo), a amaragem do módulo nas profundezas do oceano e finalmente a libertação em direcção à luz, à superfície, tudo se conjuga harmoniosamente, como se de uma celebração da vida se tratasse. Ryan renunciou no espaço à dor e a um provável sentimento de culpa (pede a um já imaginário Matt que cuide da filha) para começar de novo, em terra firme, mais um ciclo da sua vida.


A par dos Efeitos Visuais (cuja utilização abusiva na primeira parte do filme é responsável por um certo cansaço visual, mas que depois se conseguem ajustar na perfeição à história), o filme tem no Som um dos seus maiores trunfos. Todos os ruídos, incluindo os silêncios, funcionam muito bem, acompanhando da melhor forma o desenrolar da história. Quanto à fotografia tridimensional aconselhada por muitos para se visionar o filme, fará certamente as delícias dos fans de James Cameron. Pessoalmente mantenho-me afastado dessa tecnologia, porque continuo convencido que o Cinema é uma arte que deverá expressar-se num écran plano e não tornar-se num espectáculo de feira.


CURIOSIDADES:

- Depois de Angelina Jolie ter recusado o papel principal, os produtores queriam Natalie Portman para protagonista. Mas esta também acabou por desistir, em virtude de se encontrar grávida na altura. Outras actrizes que chegaram a ser testadas: Rachel Weisz, Naomi Watts, Scarlett Johansson...

- Durante uma conferência de imprensa, um jornalista mexicano (Carlos Pérez) perguntou a Alfonso Cuarón se tinha sido muito difícil filmar no espaço. O realizador não se desmanchou e respondeu: «Tínhamos câmaras da Soyuz, a missão russa. Por isso estivemos 3 meses no espaço sem problemas.» A gargalhada foi geral na sala.